terça-feira, 7 de novembro de 2017

Sala de aula, espaço de combate

Elas são a maioria da população: de acordo com dados do Censo 2010, o Brasil tem 97.342.162 mulheres, quase 4 milhões a mais do que os 93.390.532 homens, o que significa que há 95,9 homens para cada cem mulheres no país. Também são, conforme o levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais instruídas que os homens. Na população masculina de 25 anos ou mais de idade, o percentual de homens sem instrução ou com o fundamental incompleto foi de 50,8%, ao passo que o daqueles com diploma de nível superior foi de 9,9%. Já na população feminina, esses indicadores foram 47,8% e 12,5%, respectivamente.
A taxa de abandono escolar precoce – ou seja, a proporção de jovens de 18 a 24 anos de idade que não haviam completado o ensino médio e não estavam estudando – foi maior entre os homens (41,1%) do que entre as mulheres (32%). Entre os trabalhadores em educação, elas também representam, por questões históricas e culturais, a maioria: cerca de 85% da categoria. Estatísticas, todavia, não se traduzem espontaneamente em respeito e não discriminação. Em vez disso, apesar de tantos números favoráveis, o Brasil ainda precisa lutar por uma educação não sexista.
No caso das trabalhadoras em educação, um dos principais desafios é justamente superar a tal visão histórica e cultural que as transformou em maioria na profissão. “Os desafios das trabalhadoras em educação no ambiente escolar, além daqueles compartilhados com os homens da categoria, têm várias dimensões. A primeira é a visão histórica e ideológica do magistério como vocação, extensão do lar, que exige principalmente qualidades como ‘gostar de crianças’ e, por isso, ocupação de mulher e não como profissão de alta relevância social com possibilidades de sucesso profissional e ascensão na carreira”, aponta a diretora de Gênero da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Ísis Tavares. “Essa visão orienta a política salarial do magistério, e não oferece atrativos para suprir as necessidades dos sistemas de ensino em áreas como exatas e biológicas, nas quais há um déficit de professores(as).”
Além disso, lado a lado ao sexismo ainda arraigado nas instituições de ensino, há ainda a não laicidade da educação, que também precisa ser combatida. “Existe uma debilidade em tratar a questão de gênero na formação dos profissionais que vão atuar no magistério na perspectiva da laicidade do estado. Disso resulta, num grande número de escolas, professores e professoras tratando dos temas relacionados à mulher do ponto de vista de suas convicções pessoais, com viés moral e religioso, em conversas informais, datas comemorativas etc., promovidas no âmbito escolar”, destaca Ísis.
Segundo a diretora da CNTE, é necessário incorporar a discussão da política educacional baseada em uma educação inclusiva,  não sexista, não racista, não homofóbica, não lesbofóbica e fundamentalmente laica, dentro dos sistemas de educação. Entretanto, isso esbarra não só em obstáculos estruturais, como também em preconceitos enraizados.
“Existem iniciativas de escolas que buscam trabalhar todas as questões de gênero de forma dialógica e participativa, estudantes, professores(as), funcionários(as), co- mu­nidade. Porém, isso ocorre com muita dificuldade, pois esses temas ainda têm muita rejeição entre pais/estudantes/professores”, ana­lisa Ísis. “Mesmo para educadores e educadoras que têm a iniciativa de trabalhar o tema nas escolas, há a dificuldade de um banco de dados, de material de apoio organizado e sistematizado pelas secretarias de educação como livros, filmes, sites, revistas, músicas, pinturas etc., para ser disponibilizado. A ausência desse norte acaba por contribuir com a reprodução e o fortalecimento dos estereótipos acerca das mulheres e seus direitos do ponto de vista da saúde, do seu corpo, da autonomia financeira, da família, do trabalho e do direito a uma vida sem violência, enfim, causando muitas vezes um acirramento entre concepções religiosas.”
Estereótipos e violência
A propagação de estereótipos leva, consequentemente, a uma pro­liferação da violência. Nos últimos tempos, tanto no Brasil quanto no exterior, tornou-se frequente na mídia a veiculação de notícias referentes a casos de agressões sofridas por professores e, sobretudo, professoras. Tanto isso é um fato que, no Congresso Nacional, três proposições sobre o tema foram apresentadas nos últimos anos e tramitam nas duas Casas. Baseado no levantamento “A vitimização de professores e a alunocracia”, feito pelas pesquisadoras Tânia Maria Scuro Mendes e Juliana Mousquer, da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) – a qual apontou que 58% dos docentes ouvidos não se sentem seguros em relação às condições ambientais e psicológicas nos seus contextos de trabalho e que 89% declararam que gostariam de contar com leis que os amparassem no que diz respeito a essa insegurança –, o senador Paulo Paim (PT-RS) propôs, em 2009, o Projeto de Lei 191/2009 sobre a violência contra o professor. Assim como a Lei Maria da Penha combate a violência contra a mulher, a ideia é estabelecer normas de encaminhamento para o professor agredido e de criminalização do agressor.
“Os desafios das trabalhadoras em educação no ambiente escolar, além daqueles compartilhados com os homens da categoria, têm várias dimensões. A primeira é a visão histórica e ideológica do magistério como vocação, extensão do lar, que exige principalmente qualidades como ‘gostar de crianças’ e, por isso, ocupação de mulher e não como profissão de alta relevância social com possibilidades de sucesso profissional e ascensão na carreira”
(Ísis Tavares)
No mesmo ano, o deputado federal Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) apresentou à Câmara o Projeto de Lei 6.269, que prevê a criação de um Programa Nacional de Prevenção à Violência contra Educadores (Pnave) e o estabelecimento de penas específicas aos agressores. Por fim, a senadora Marisa Serrano (PMDB-MS) propôs o Projeto 251/09, que estabelece um Sistema Nacional de Acompanhamento e Combate à Violência nas Escolas (Save).
“A violência contra professo­res(as) vem crescendo e atinge níveis e formas assustadoras. Costuma-se propagar e delegar apenas à falta de educação doméstica a responsabilidade pela forma desrespeitosa como estudantes e mesmo os próprios pais dirigem-se a professoras e professores. Porém, eles(as) reproduzem a forma como os(as) profissionais da educação são tratados(as) pelos representantes dos governos que atribuem a eles(as) todas as mazelas da educação e a um estímulo velado da mídia em rivalizar estudantes/professores(as)/pais tendo por base a falta de formação adequada para exercerem a profissão”, pondera a diretora de Gênero da CNTE. “Isso gera um sentimento de que as professoras não estão preparadas, não são profissionais importantes e dignas de respeito e deferência.” Por outro lado, como enfatiza Ísis, a meritocracia introduzida nas políticas educacionais em vários estados e municípios acaba criando uma obrigatoriedade em atingir índices como parâmetros para avaliar professores e alunos, o que transforma as relações entre escolas, docentes e estudantes.
Mais do que um reflexo do descaso e do desrespeito com os quais os trabalhadores e trabalhadoras em educação são tratados, o comportamento de violência e agressão é incentivado e corroborado, direta ou indiretamente, pelo mercado – que trata a mulher como objeto e, portanto, descartável – e pela própria sociedade, que difunde esses valores destorcidos (ou antivalores).
“A violência física, psicológica, o assédio moral contra os professores e professoras são fatos. Mas, quando se trata apenas das professoras, toma contornos perversos”, reforça a diretora da CNTE. “Recentemente, a marca de cadernos Jandaia foi alvo de protestos porque comercializou cadernos que continham imagens ofensivas às mulheres. Uma dentre outras não menos ofensivas e deploráveis reproduzia uma placa de trânsito de ‘animais na pista’ com uma figura feminina entre dois carros. Partindo-se do pressuposto que a categoria de trabalhadores em educação é eminentemente feminina, a mensagem subliminar de escárnio e concepção de que mulheres são seres de segunda categoria, sendo-lhes subtraída a própria humanidade, é uma agressão simbólica violenta. É o mercado levando para dentro do espaço escolar, através de estudantes, mensagens subliminares que diminuem e ofendem as mulheres que podem ser suas professoras, colegas, funcionárias.”
O papel da educação
Se a prática de atos violentos não é, de forma alguma, restrita aos homens, casos como esse dos cadernos Jandaia – que foi alvo de intensos protestos nas redes sociais por seu viés machista, sexista e de apologia ao abuso sexual e à desigualdade de gênero – demonstram como a relação entre violência e masculinidade é reproduzida em diversos meios, não somente na escola, desde os ritos de passagem que nas sociedades tradicionais regulavam a transformação do menino em homem. A Jandaia pediu desculpas publicamente pelo Facebook, disse que foi mal-interpretada e cancelou a comercialização dos produtos. Preconceitos profundos, contudo, infelizmente não podem ser cancelados com a mesma facilidade.
No livro “Cotidiano das escolas: entre violências”, coordenado pela pesquisadora Mirian Abramovay e editado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 2006, especialistas apontam para a importância de uma educação com perspectiva de uma cultura de paz, que contribua para modificar estereótipos de masculinidade – como o uso de armas e o apelo à agressão física e subordinação – e reduzir a discriminação contra mulheres e contra o homoerotismo. Conforme a publicação, é imprescindível “promover debates e discussões em torno dos temas relacionados à Cultura de Paz, como contraponto à violência, buscando incorporá-los ao projeto político e ao currículo, e sensibilizar seus professores e demais profissionais”. Tais debates, na opinião da pesquisadora, expressa no livro, devem privilegiar temas relacionados às diversas formas de discriminação (contra negros, homossexuais, mulheres, deficientes físicos etc.).
“Precisamos resgatar a escola como lugar de construção de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária”, concorda Ísis Tavares. “Isso só conseguiremos com a valorização dos(as) profissionais da educação, com a gestão democrática participativa que aproxime a comunidade da escola e a promoção da cultura da paz, do respeito à diversidade, através de ações que estimulem e valorizem a participação de todos e todas.”
Todavia, como lembra a diretora de Gênero da CNTE, a necessidade de apresentar resultados pré-estabelecidos por índices a serem atingidos em suas disciplinas faz com que a escola perca ou distorça seu caráter político-pedagógico em definir sua intencionalidade, que é política, e os meios para atingir esse fim, que é pedagógico, os quais são intrinsecamente ligados. “A intencionalidade é atingir índices, os estudantes passam a ser tratados como estatísticas, chegando ao ponto de algumas escolas serem consideradas de excelência com tratamento e investimento diferenciado em detrimento de outras”, critica. “Estamos perdendo o espaço da escola como espaço privilegiado de formação. É onde meninos e meninas têm uma importante fase de socialização e têm com ela uma relação de respeito, cuidado e orgulho. Esse aspecto socioafetivo perde a devida importância e fica secundarizado nas relações entre professor(a)/estudantes/pais. Os estudantes começam a não considerar a escola como um espaço que valorize sua subjetividade, suas potencialidades como um todo. E são os professores(as) que lidam diretamente com eles.” É esse modelo que precisa ser rompido para que a escola possa ser, de fato, um espaço de equidade.
Contra o silêncio
Outra ruptura urgente no combate não só à violência no âmbito escolar, mas em toda a sociedade, é o da cultura do silêncio. Não é fácil, uma vez que se calar faz parte da cultura machista de tentar naturalizar a violência, seja ela doméstica, escolar, trabalhista, como assunto que deve ficar oculto dentro dos lares, corredores das instituições de ensino, ambiente de trabalho, e não ser tratado como caso de polícia e de Justiça. Como observa Ísis, ainda existem mulheres que aceitam a violência por temer pelo seu destino e de seus filhos. “Não conheço a autoria de uma publicação nas redes sociais, mas resume bem o porquê do silêncio: ‘O que existe é mulher humilhada demais para denunciar, machucada demais para reagir, com medo demais para acusar, pobre demais para ir embora’.”
No caso das trabalhadoras em educação, elas podem e devem sempre contar com o apoio de seus sindicatos, federações, confederações e demais entidades representativas. “No âmbito das denúncias, as entidades devem prestar assessoria e exigir providências das secretarias de educação para que sejam apuradas”, esclarece a diretora da CNTE. Nesse sentido, a finalidade das secretarias de Relações de Gênero e/ou de Assuntos da Mulher nas entidades representativas dos trabalhadores da educação é, fundamentalmente, promover a organização e a participação das trabalhadoras em educação no âmbito das suas entidades. “Para isso é necessário formular políticas e campanhas para as trabalhadoras em educação e também atividades em articulação com outros sindicatos e movimento de mulheres, para que as bandeiras comuns às mulheres possam ser conhecidas, reconhecidas e reforçadas”, reafirma Ísis.
“Nossa luta imediata é por mais políticas públicas para as mulheres, para que elas possam ter maior protagonismo na condução de suas vidas e no destino do nosso país. Mais políticas de geração de emprego e renda, igualdade no trabalho, que apontem para a autonomia financeira; direitos sexuais e reprodutivos na perspectiva da laicidade do estado; mais mulheres nos espaços de poder e decisão”, defende. “Mas nossa luta por igualdade não se resume à conquista de direitos e espaços na sociedade, apesar de ser uma etapa importante dela. Mas sim por um outro mundo que acreditamos possível, em que homens e mulheres possam ser atendidos(as) em todas as dimensões das necessidades humanas e valorizados(as) segundo a sua capacidade, a partir do direito à igualdade de oportunidades para todos e todas.”

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