Paula Mastroberti*
Em 22 de abril, o jornal carioca Extra publicou matéria sobre um caso polêmico que envolveu um estudante de 11 anos, sua mãe e uma escola municipal do Rio de Janeiro em torno de uma obra minha, Heroísmo de Quixote (prêmio Jabuti na categoria juvenil em 2006). Segundo a reportagem, o livro fora indicado ao menino na sala de leitura da escola. Em casa, ele perguntou à mãe sobre expressões e situações ligadas à violência sexual, cujo significado não havia compreendido. A mãe, considerando a leitura imprópria, pediu que a obra fosse retirada da biblioteca; contudo, ainda segundo a matéria, “a direção só agiu quando o assunto parou na delegacia”, envolvendo a Secretaria Municipal de Educação e a Coordenadoria Regional da Educação, que retiraram não só esta, mas todas as minhas obras dos acervos das escolas municipais.
De minha parte, a maior preocupação concerne à quebra de confiança entre a criança e os adultos responsáveis pelo acesso ao conhecimento – que mundo é esse, imagino perguntar-se a criança, que não me querem explicar, mas antes fingir que não existe? Que mundo é esse que me coloca um livro na mão, para depois dizer que não devo lê-lo? Da parte dos pedagogos, percebe-se uma crítica à atitude da professora que admitiu não conhecer o conteúdo da obra e uma crítica à escola, que perdeu a oportunidade de discutir os temas polemizados em sala de aula. Em defesa da mãe, argumentam que ela tem o direito de decidir o que é bom e o que não é para o seu filho. Assino embaixo dessas arguições. Contudo, faltou tocar num ponto que merece a atenção não da autora aqui envolvida, mas da pesquisadora que está para concluir o doutorado em Letras, especializando-se justamente na produção artística-cultural direcionada ao público juvenil.
As atitudes reacionárias dos setores da educação em relação a indicações para aquisição escolar estão ficando recorrentes: lembro a discussão que culminou no pedido de retirada dos quadrinhos de Will Eisner das escolas públicas de São Paulo e do Paraná e o caso de Teresa que Esperava as Uvas, de Monique Revillion; ambos foram recusados pelo sistema educacional, apesar de indicados pelo PNBE. Até a obra de Lobato é acusada de oferecer perspectiva racista da personagem Tia Nastácia.
Tais eventos são sintomas de uma disparidade entre as noções éticas e estéticas da sociedade leiga e os programas da Educação e da Cultura, os maiores subsidiários na produção e na distribuição de literatura infantil e juvenil. Uma criança de 11 anos pode assistir ao Big Brother ou a um filme de conteúdo agressivo na TV; mas, na escola, a inserção de uma obra de conteúdo assemelhado adquire outras proporções. Na livraria ou em qualquer outro espaço de convívio sem as normas disciplinares, qualquer livro poderá ser lido furtivamente por um menino como o da reportagem (quantos de nós, leitores privilegiados em nossa infância, não líamos os livros dos pais às escondidas?).
O problema não é o livro – não quero me referir à minha obra, mas ao livro em geral –, e sim a relação entre adultos e crianças. E por crianças e adultos me refiro aos modos como a sociedade vê a criança e ao modo como a criança percebe criticamente o adulto. Um objeto cultural deveria estar acima de qualquer normatização ou imposição obrigatória; o livro deveria circular livremente, sendo facultativa a sua escolha pelo leitor.
Como autora, pesquisadora, artista e educadora, o que me revolta é a traição do leitor infantil/juvenil como usufrutuário da cultura. As falhas são evidentes em todo o sistema: por um lado, a elite acredita na seleção e imposição dos seus valores culturais como um benefício, esperando que o público engula passivamente o que lhe for oferecido como bom e do bem, sem levar em conta a diversidade cultural e ética; por outro, há lacunas na formação do sujeito social, fomentadoras do preconceito e da ignorância que impedem o reconhecimento do papel da arte na sociedade (que nada tem a ver com normas éticas, mas com uma emancipação por via do estético) e obnubilam o olhar às incoerências de um comportamento pretensamente moralizante. Por fim, desgosta-me observar que, mais uma vez, a literatura e o leitor sejam meras figuras retóricas num discurso que, na verdade, parece majoritariamente sintonizado com diretrizes burocráticas estabelecidas sobre aquilo que deve ser a cultura e a educação, sem reconhecer que todos, crianças e adultos, têm o direito de exercer sua voz como cidadãos participantes do cultural.
A arte deve ser encontrada no meio disso: não é baluarte, nem negação da cultura (ou da educação), mas a sua (re)invenção. Não é apaziguadora, não é consenso, não educa, não é mensageira – mas inquieta, debate sobre o humano e o mundo. Não encontra respostas. A melhor mediação entre o conhecimento e a criança é aquela realizada no interior de um espaço amoroso, onde educador e educando estabeleçam um acordo de aceitação mútua e do qual, afinal, ambos saiam aprendendo. Na fria burocracia que engessa o acesso à literatura, não são somente os jovens, em sua desistência de ler, os grandes perdedores; mas a sociedade como um todo.
* Escritora, artista plástica e doutoranda em Letras na PUCRS.
MASTROBERTI, Paula. Quixote no mundo da educação e da cultura. Zero Hora, 14 maio 2011, p. 7. Cultura. Disponível em: .
Extraído do Blog Biblioteconomia & Patrimônio.
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