terça-feira, 14 de agosto de 2012

Mídia e o golpe civil-militar a construção de um consenso


Por Caroline Silveira Bauer
A Revolução afirma que:
1)– O Brasil reencontrou seu destino
2)– O futuro do Brasil depende de tua confiança
3)– Democracia, sim, comunismo, não.[1]
Imagem: Reprodução Site Políticas de Memória
 As ligações entre a mídia e a ditadura civil-militar foram amplamente estudadas por vários pesquisadores. Os jornais gaúchos Correio do Povo e Zero Hora assim procederam nos primeiros quinze anos da ditadura militar: construindo – elaborando e reelaborando – uma justificativa que legitimasse o seu apoio ao regime. Neste processo, dedicaram os editoriais dos dias antecedentes e posteriores ao aniversário da “Revolução” para disseminar as suas construções ideológicas, ligadas aos interesses da ditadura, e mais, prescrever a sociedade gaúcha, o que e como deveria fazer, pensar, sentir e valorizar.
As “reformas de base” anunciadas por João Goulart deixaram temerosas as elites gaúchas – onde se inseriam os empresários da imprensa. Valendo desta temeridade, descaracterizar, deslegitimar e desqualificar o período anterior a 1964 foi uma constante nestes editoriais durante todo o primeiro período da ditadura, como nestes exemplos, de 1965, 1969, 1973 e 1975, respectivamente:

“A desordem era geral – política, administrativa, militar, social, econômica, financeira, cultural, moral. Estávamos a [sic] beira do colapso.”[2]

“O quadro de irresponsabilidade, inépcia e desordem que se desenhava nos idos de março de 64, e que teria levado o País ao caos político, social e econômico [...] era bastante para justificar e legitimar o movimento político militar que se haveria, depois, convir em chamar de Revolução de Março ou Revolução de 1964.”[3]

“Ao refletir em nossa mente aquele Brasil enxovalhado, desmoralizado, e desprestigiado, dos olhos de seus concidadãos e perante o mundo inteiro, sem moral e confrontando-o com o de nossos dias, apenas nove anos passados, [...].”[4]

“[Marchávamos] aceleradamente para o caos econômico e social quando, em 1964, surgiu o movimento que interpretando os anseios populares, recompôs as esperanças da maioria, ameaçadas de destruição por uma minoria, cujos interesses não se coadunavam com as mais caras aspirações da nacionalidade.”[5]

Era preciso, portanto, que a grandeza da ação dos militares fosse divulgada como responsável por salvar a população do perigo que representava o governo anterior. Além disso, ao estabelecer um contraponto entre o “anarquismo” e o “caos” do governo anterior e a “ordem” e “regeneração” que os militares representavam, o golpe ganhava legitimidade perante a sociedade.
Outra questão relativa à construção desta justificativa refere-se à linguagem utilizada, em destaque, o uso constante da primeira pessoa do singular – nós – em seus textos. Os editoriais, ao transmitirem uma visão dos fatos como a visão dos interesses gerais da sociedade gaúcha – que, na verdade, tratavam-se de seus próprios interesses – ou seja, ao pretenderem interpretar os anseios da comunidade, acabaram por legitimar, perante a opinião pública, a sua justificativa para o golpe.
Dois exemplos esclarecem bem esta prática:

“[Civis e militares] não permitirão que a mediocridade e a demagogia sejam utilizados [sic] para confundir e mistificar os verdadeiros anseios do povo brasileiro, que deseja paz, trabalho, ordem e bem-estar social [...].”[6]

“Cremos na Revolução como síntese dos anseios de todos os brasileiros que sonham e trabalham no sentido de entregar a seus filhos a Pátria que para nós sonharam nossos pais: terra da justiça e da verdade, do amor e da liberdade, onde só não encontraram lugar os pregoeiros da desordem, os corruptos e os que roubam; os que mentem e os que traem.”[7]

Desmoralizado o governo anterior ao golpe, interpretada a vontade do povo gaúcho, os editoriais necessitaram definir do que se tratava a “Revolução” por eles glorificada. Para o Correio do Povo do dia 30 de março de 1965, “a revolução de 31 de março foi, pois, a solução extrema, o remédio heroico, a que teve que recorrer o Brasil. [...] Foi, pois, o movimento de 31 de março a cirurgia urgente para a salvação nacional.”[8]
Procurou-se, da mesma forma, definir o movimento como a principal forma de evitar o comunismo, que, segundo acreditavam, era incipiente: “em toda a parte era assim, o Brasil não seria cubanizado ou chinificado, pois contra essa infeliz tentativa, em toda parte, os patriotas, os democratas opunham o propósito de resistir.”[9] A utilização de exemplos como o cubano e chinês, ressalta esta preocupação, além de destacar o papel dos militares como “defensores da democracia”, e salienta a crença destes empresários da imprensa de que o regime militar seria a única medida cabível para o Brasil:

“Só pela égide de um regime de firmeza inabalável da ordem constituída e de paz social, afeiçoado à realidade sociológica do País, será possível a arrancada para o desenvolvimento, que é vital e decisiva para os destinos do Brasil, de grande potência latino-americana e mundial. E quem for contra a institucionalização de condições para tanto será, em última análise, contra a própria nação brasileira [...].”[10]

Não somente os empresários da imprensa acreditavam que os militares seriam os únicos capazes de governar o Estado brasileiro; os próprios militares acreditavam nisto, afirmando que os civis eram “incapazes de gerir a coisa pública”.[11]Entretanto, o apoio à delegação do poder a estes sujeitos implicou, pela imprensa, uma solidariedade com a imagem sombria e soturna destes homens. Porém, esta imagem satisfazia o interesse destes empresários, de acreditar que haveria, de 1964 em diante, ordem social e segurança para seus negócios[12].
Unindo esta preocupação pela segurança e o medo comunista, além das preocupações advindas da crise econômica pela qual passava o país, Ary de Carvalho, diretor responsável de Zero Hora, escreveu, em 1967, no editorial do dia 31 de março, terceiro aniversário do golpe: “os princípios básicos da revolução de 1964 eram a manutenção da democracia, a salvaguarda do direito à propriedade, a paz social e a ordem pública; concomitantemente, aspiravam os revolucionários a curar a economia nacional, dessangrada pela inflação galopante e pela corrupção generalizada.”[13]
Ainda sobre as definições do que se tratava a “Revolução”, houve preocupações, pelos editoriais, de explicar por que se tratava de uma revolução o movimento de 31 de março. Neste sentido, os empresários da imprensa estavam utilizando uma idéia apropriada da esquerda brasileira pelos militares, ou seja, os militares estavam utilizando o clima revolucionário vivido pelo país no período anterior ao golpe, que conformava o imaginário político de revolução, ao deflagraram o golpe e ao longo de sua manutenção[14].
Este exemplo explicita essa preocupação:

“Verdade que há quem negue, à última, o caráter de revolução [ao movimento], autenticamente, para atribuir-lhe tão só o de pronunciamento militar ou golpe de Estado, que, no entanto, o seria de fato, se de uma simples substituição de homens no Poder, pela força, se tratasse, e não, como se patenteia aos olhos de todo o mundo, de uma profunda alteração institucional, visando a dar uma nova estrutura sócio-econômica e novo regime político, nova forma de governo à Nação.”[15]

O processo de construção de uma justificativa, por parte dos empresários da imprensa, para o golpe e para seu apoio ao mesmo, necessitou, constantemente, explicitar os resultados que em curto prazo foram alcançados pelos militares. Durante o período de 1968 a 1973, época do chamado “milagre econômico”, a classe média e a elite dos centros urbanos sentiram-se otimistas frente aos avanços econômicos[16]; e este otimismo estava impresso nas colunas editorias daquele período. O governo de Médici transmitiu a mensagem de que o Brasil estava velozmente se transformando em potência mundial, graças aos seus 10% anuais de crescimento econômico. A Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), órgão de relações públicas do governo, foi responsável pela assimilação, por parte da sociedade brasileira, de que o aumento do poder nacional, conjugado com o rápido crescimento da economia eram resultado do autoritarismo vigente[17].
Os empresários da imprensa buscavam legitimidade para o apoio ao golpe com base, dentre outros fatores, nos êxitos econômicos dos governos militares, que representando as classes dominantes e setores das classes médias, promoveram um “crescimento rápido das forças produtivas, acompanhado da concentração de riquezas, do aumento da distancia entre os mais ricos e mais pobres, [...].”[18]
Sobre os resultados, estes foram destacados como os mais diversos. Em se tratando da conjuntura econômica brasileira do período, mas também em referência a tão pretendida “ordem”, e a promulgação da nova Constituição em 1967, assim escreve Ary de Carvalho: “foram restabelecidas a ordem pública, a dignidade do poder constituído, a inflação foi em parte debelada; a democracia sofreu restrições, em nome da ordem, mas a nova constituição, na sua letra, garante o integral respeito do Estado aos direitos e garantias individuais.”[19]
A mudança precisava ser transmitida como global, irreversível e histórica:

“A data que o país está celebrando hoje será, sem dúvida, um marco para quantos, no futuro, se detiverem no estudo da evolução política, social e econômica do Brasil. Não importa que suas razões, a sua mecânica, os próprios erros que hajam sido cometidos, levantem contestações aqui e ali. Nem chegam a ter grande significação, ainda que partidas de origens respeitáveis, as reservas que sejam feitas à linha jurídica seguida, porque a verdade, refletida nos sentimentos populares mais generalizados, é que os três Governos da Revolução despertaram simpatias crescentes e se firmaram, não apenas no apoio das Forças Armadas, porém igualmente, na grande maioria do povo brasileiro.”

E prossegue:

“A data de hoje [31 de março de 1971] deve ser, assim, acima de tudo, uma data em que todos meditem sobre o que éramos administrativa e politicamente em 1964 e o que somos hoje. Em tudo não será o melhor dos paraísos. Mas nunca o país trabalhou com tanta decisão, unidade, consciência. [...] Hoje, sob a disciplina, a austeridade e a serenidade equilibrada e firme de um governo que é, acima de tudo, fiel aos mais caros e impessoais interesses do Brasil e do leal convívio dos povos, aqui se constrói uma nação que não é, ainda, certamente, o modelo democrático do mundo, porém vem realizando as condições fundamentais para sê-lo de fato, de verdade, e não sob os falsos roupões da demagogia que tanto lhe retardou o progresso e lhe envenenou a alma boa e justa [!]. A Revolução não foi só correção e punição. Ela foi, sobretudo, renovação. Esta foi a sua grande, a sua saneadora virtude.”[20]

Assim, tomou forma a justificativa para o golpe e para o apoio por parte da imprensa porto-alegrense.
[1] Correio do Povo, Porto Alegre, 28 mar. 1965. p. 21.
[2] Correio do Povo, Porto Alegre, 30 mar. 1965. p. 4.
[3] Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1969. p. 4.
[4] Correio do Povo, Porto Alegre, 31 mar. 1973. p. 4.
[5] Zero Hora, Porto Alegre, 31 mar. 1975. p. 4.
[6] Correio do Povo, Porto Alegre, 28 mar. 1965. p. 8.
[7] Correio do Povo, Porto Alegre, 4 abr. 1965. p. 8.
[8] Correio do Povo, Porto Alegre, 30 mar. 1965. p. 4.
[9] Correio do Povo, Porto Alegre, 29 mar. 1967. p. 4.
[10] Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1969. p. 4.
[11] FICO, Carlos. Como eles agiam. p. 149.
[12] FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 59.
[13] Zero Hora, Porto Alegre, 31 mar. 1967. p. 4. Grifo da autora.
[14] Para maiores informações sobre a apropriação do conceito de revolução pelos militares, cf. CURTIS, Regina Maria Gonçalves. 1964 e a Revolução no Brasil: representações e imaginário social (1964-1973). Porto Alegre. Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (dissertação de Mestrado), 1999.
[15] Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1969. p. 4.
[16] FICO, Carlos. Reinventando o otimismo. Op. cit., p.17.
[17] Sobre a AERP, cf. SKIDMORE, Thomas. Op. cit.,  p. 221; FICO, Carlos.Reinventando o otimismo. Op. cit., cap. 4.
[18] RIDENTI, Marcelo. Que história é essa?. In: REIS FILHO, Daniel Aarão et al..Versões e ficções: o seqüestro da história. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997. p. 20.
[19] Zero Hora, Porto Alegre, 31 mar. 1967. p. 4.
[20] Correio do Povo, Porto Alegre, 31 mar. 1971. p. 4.
Fonte: Site Políticas de Memórias. Disponível em: http://politicasdememoria.org/?p=344

2 comentários:

  1. Olá! Passei para conhecer seu blog. Voltarei outras vezes para realizar uma boa leitura. Fique com Deus.

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  2. Elisete, muito obrigado por nos prestigiar. Também fique com Deus.

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