Reis: "Escravos não foram vítimas passivas"
Dayanne Sousa
A história da escravidão no Brasil não precisa ser uma história de vítimas, avalia João José Reis. O historiador está lançando com mais dois autores o livro O Alufá Rufino, resultado de uma extensa pesquisa para reconstruir os passos de um escravo que, liberto, foi marinheiro em navios negreiros.
Autor também de um longo estudo sobre a Revolta dos Malês (levante de africanos liderado por muçulmanos na Bahia), ele acredita que a história da escravidão tem ganhado mais espaço nas escolas, porém critica o tom de "vitimização".
- Essa história não precisa ter o tom da vitimização somente. Acho melhor as crianças e adolescentes aprenderem que os escravos não foram vítimas passivas de suas circunstâncias, que resistiram como puderam.
O novo livro, também assinado pelos historiadores Flávio dos Santos Gomes e Marcus de Carvalho, narra a vida de Rufino José Maria, que era alufá, um mestre malê. Ele vivia onde hoje fica a Nigéria, mas foi vendido a traficantes baianos e passou oito anos como escravo em Salvador.
Reis destaca que Rufino teve a chance de viajar para vários locais, mesmo quando escravo. Esteve no Rio Grande do Sul, comprou sua liberdade, foi a Angola e depois passou a integrar a tripulação de um navio negreiro.
Em entrevista por e-mail, Reis destaca a importância de dar luz a um personagem a princípio desconhecido, alguém que não era ilustre.
- É importante que os rebeldes explícitos como Zumbi, os malês, Manuel Congo e outros sejam lembrados, festejados e estudados, mas não devemos esquecer os heróis do dia a dia, anônimos, que foram a maioria dos escravizados.
Leia a entrevista na íntegra.
Terra Magazine - Primeiro, gostaria que o senhor comentasse um pouco sobre o processo de pesquisa de O Alufá Rufino. Como foi que o senhor e os outros pesquisadores passaram a conhecer a existência desse personagem - o Rufino José Maria - e quais foram as referências para conhecer a vida dele?
João José Reis - O primeiro documento foi encontrado pelo historiador Flávio Gomes, da UFRJ, no Arquivo Nacional. Era a cópia de um inquérito policial enviado pelo governo pernambucano ao ministro da Justiça. A polícia investigava rumores de uma conspiração africana no Recife, em 1853. Ao vasculhar a casa de Rufino foram descobertos muitos manuscritos em árabe, inclusive uma cópia do Corão provavelmente feita por ele. As autoridades o prenderam, pois lembraram-se da Revolta dos Malês, um levante de africanos liderado por muçulmanos em 1835 na Bahia. Rufino também era malê, termo que vem do iorubá imalê, muçulmano. De fato ele era alufá, um mestre malê. Sob interrogatório, além de afirmar sua fé com muita dignidade, conhecimento e segurança, contou sua vida de aventuras e desventuras, desde quando fora capturado em sua terra natal, o poderoso reino de Oyó na atual Nigéria, em torno de 1820.
E quais as fontes dessa pesquisa, além do inquérito policial?
As fontes para o livro são muitas e bem diversas, estão em documentos de arquivos baianos, cariocas, gaúchos, angolanos, portugueses e ingleses, nos quais seguimos as pistas deixadas por Rufino. Nem sempre o encontramos cara a cara, mas encontramos gente com quem ele conviveu, principalmente seus senhores e empregadores, mas também outros escravos e libertos, marinheiros, capitães de navios, viajantes, autoridades políticas e policiais brasileiros, portugueses, angolanos, ingleses, serra-leonenses etc. Com esses personagens, recompomos para o leitor os diversos ambientes em que Rufino viveu, inclusive sua experiência no mar. Foi a narrativa do próprio Rufino que traçou o roteiro do livro, uma vida que daria um roteiro de filme.
Em que medida o retrato deste homem é também um retrato da escravidão naquele período? Não quero generalizar as coisas, mas o que o senhor destacaria como um traço marcante da vida dele e do momento? O fato de ele ter comprado a alforria e depois trabalhar em navios negreiros é uma ironia típica?
Sua vida foi excepcional, mas não totalmente incomum. Dos cerca de cinco milhões de escravos importados da África para o Brasil, que foi o maior consumidor deles nas Américas (cerca de 45% do total), a imensa maioria morreu escravizada, não teve a chance de conhecer a liberdade, provavelmente morreu servindo ao primeiro e único senhor.
Rufino foi diferente. Além de mudar de senhor várias vezes, e de se alforriar, circulou muito dentro e fora do Brasil, tanto como escravo quanto liberto. Mas muitos libertos africanos foram marinheiros de navios negreiros. Nesse sentido Rufino não foi exceção. Entre 1780 e 1860, 17% dos tripulantes dos negreiros brasileiros eram africanos. Desconhecemos, no entanto, outros que tenham deixado eles próprios tantas pistas sobre sua biografia. Usamos Rufino como uma espécie de guia para discutir a escravidão nos vários lugares onde ele viveu e que visitou, no Brasil, na África e sobre o Atlântico.
Boa parte do livro se dedica ao tráfico transatlântico de escravos num momento crucial, quando já proibido pelo Brasil e reprimido pela marinha britânica sobretudo nas costas africanas. O embate entre ingleses e traficantes foi longo e custoso para ambos os lados, centenas de navios foram apresados, o conflito teve uma face política e diplomática - de um lado os países importadores de cativos, como o Brasil, do outro a Inglaterra -, mas o livro se volta mais para os embates no mar e nos entrepostos do tráfico, que detalhamos. E Rufino no meio disso tudo. O livro tem ritmo de aventura, eu acho.
O Rufino é um personagem como o Eichmann foi para Hannah Arendt (Eichmann em Jerusalém), por exemplo? Um membro de uma engrenagem histórica e social, mas que não era necessariamente o mais ilustre, um líder, um mandante? Qual a importância de personagens assim para a historiografia?
Rufino foi um personagem bem menor para o escravismo do que Eichmann foi para o nazismo. Mas era uma importante pequena peça da máquina escravista atlântica, que ajudou (literalmente) a alimentar como cozinheiro de negreiro, mas também como pequeno traficante. Personagens de seu tope - não necessariamente com a mesma ocupação, mas libertos africanos - são cada vez mais o foco da recente historiografia, personagens cujas vidas, no mais das vezes, aparecem de relance, um flash apenas, em geral parte de episódios dramáticos, de crimes, revoltas etc. Dificilmente conseguimos dados para narrar um pedaço tão grande da trajetória de pessoas como Rufino.
Vou sair um pouco do tema do livro, para falar sobre seu trabalho na história da escravidão. O senhor já escreveu sobre a Revolta dos Malês, que é um fato histórico daqueles que a gente não aprende muito no colégio, não é? A história da escravidão no Brasil é "mal contada" nesse sentido? Nós a valorizamos?
Hoje encontramos episódios como a Revolta dos Malês em livros didáticos e em salas de aula, a coisa está melhorando sobretudo devido à lei que obriga a inclusão nos currículos escolares de temas como a história da África e do negro no Brasil. Mas essa história pode ser bem ou mal contada. Essa história não precisa ter o tom da vitimização somente. Acho melhor as crianças e adolescentes aprenderem que os escravos não foram vítimas passivas de suas circunstâncias, que resistiram como puderam a virar mera máquina de trabalho, que resistiram a isso de diversas formas, nem sempre através de atos heróicos, da rebeldia aberta, mas através de formas mais sutis de resistência, fazendo corpo mole, fingindo-se doentes, manipulando psicologicamente seus senhores, fugindo para uma festa, batendo atabaques, cultuando seus deuses, aprendendo a ler e escrever a língua do Corão.
É importante que os rebeldes explícitos como Zumbi, os malês, Manuel Congo e outros sejam lembrados, festejados e estudados, mas não devemos esquecer os heróis do dia a dia, anônimos, que foram a maioria dos escravizados.
Fonte: Histórica (Terra Magazine)
Dayanne Sousa
A história da escravidão no Brasil não precisa ser uma história de vítimas, avalia João José Reis. O historiador está lançando com mais dois autores o livro O Alufá Rufino, resultado de uma extensa pesquisa para reconstruir os passos de um escravo que, liberto, foi marinheiro em navios negreiros.
Autor também de um longo estudo sobre a Revolta dos Malês (levante de africanos liderado por muçulmanos na Bahia), ele acredita que a história da escravidão tem ganhado mais espaço nas escolas, porém critica o tom de "vitimização".
- Essa história não precisa ter o tom da vitimização somente. Acho melhor as crianças e adolescentes aprenderem que os escravos não foram vítimas passivas de suas circunstâncias, que resistiram como puderam.
O novo livro, também assinado pelos historiadores Flávio dos Santos Gomes e Marcus de Carvalho, narra a vida de Rufino José Maria, que era alufá, um mestre malê. Ele vivia onde hoje fica a Nigéria, mas foi vendido a traficantes baianos e passou oito anos como escravo em Salvador.
Reis destaca que Rufino teve a chance de viajar para vários locais, mesmo quando escravo. Esteve no Rio Grande do Sul, comprou sua liberdade, foi a Angola e depois passou a integrar a tripulação de um navio negreiro.
Em entrevista por e-mail, Reis destaca a importância de dar luz a um personagem a princípio desconhecido, alguém que não era ilustre.
- É importante que os rebeldes explícitos como Zumbi, os malês, Manuel Congo e outros sejam lembrados, festejados e estudados, mas não devemos esquecer os heróis do dia a dia, anônimos, que foram a maioria dos escravizados.
Leia a entrevista na íntegra.
Terra Magazine - Primeiro, gostaria que o senhor comentasse um pouco sobre o processo de pesquisa de O Alufá Rufino. Como foi que o senhor e os outros pesquisadores passaram a conhecer a existência desse personagem - o Rufino José Maria - e quais foram as referências para conhecer a vida dele?
João José Reis - O primeiro documento foi encontrado pelo historiador Flávio Gomes, da UFRJ, no Arquivo Nacional. Era a cópia de um inquérito policial enviado pelo governo pernambucano ao ministro da Justiça. A polícia investigava rumores de uma conspiração africana no Recife, em 1853. Ao vasculhar a casa de Rufino foram descobertos muitos manuscritos em árabe, inclusive uma cópia do Corão provavelmente feita por ele. As autoridades o prenderam, pois lembraram-se da Revolta dos Malês, um levante de africanos liderado por muçulmanos em 1835 na Bahia. Rufino também era malê, termo que vem do iorubá imalê, muçulmano. De fato ele era alufá, um mestre malê. Sob interrogatório, além de afirmar sua fé com muita dignidade, conhecimento e segurança, contou sua vida de aventuras e desventuras, desde quando fora capturado em sua terra natal, o poderoso reino de Oyó na atual Nigéria, em torno de 1820.
E quais as fontes dessa pesquisa, além do inquérito policial?
As fontes para o livro são muitas e bem diversas, estão em documentos de arquivos baianos, cariocas, gaúchos, angolanos, portugueses e ingleses, nos quais seguimos as pistas deixadas por Rufino. Nem sempre o encontramos cara a cara, mas encontramos gente com quem ele conviveu, principalmente seus senhores e empregadores, mas também outros escravos e libertos, marinheiros, capitães de navios, viajantes, autoridades políticas e policiais brasileiros, portugueses, angolanos, ingleses, serra-leonenses etc. Com esses personagens, recompomos para o leitor os diversos ambientes em que Rufino viveu, inclusive sua experiência no mar. Foi a narrativa do próprio Rufino que traçou o roteiro do livro, uma vida que daria um roteiro de filme.
Em que medida o retrato deste homem é também um retrato da escravidão naquele período? Não quero generalizar as coisas, mas o que o senhor destacaria como um traço marcante da vida dele e do momento? O fato de ele ter comprado a alforria e depois trabalhar em navios negreiros é uma ironia típica?
Sua vida foi excepcional, mas não totalmente incomum. Dos cerca de cinco milhões de escravos importados da África para o Brasil, que foi o maior consumidor deles nas Américas (cerca de 45% do total), a imensa maioria morreu escravizada, não teve a chance de conhecer a liberdade, provavelmente morreu servindo ao primeiro e único senhor.
Rufino foi diferente. Além de mudar de senhor várias vezes, e de se alforriar, circulou muito dentro e fora do Brasil, tanto como escravo quanto liberto. Mas muitos libertos africanos foram marinheiros de navios negreiros. Nesse sentido Rufino não foi exceção. Entre 1780 e 1860, 17% dos tripulantes dos negreiros brasileiros eram africanos. Desconhecemos, no entanto, outros que tenham deixado eles próprios tantas pistas sobre sua biografia. Usamos Rufino como uma espécie de guia para discutir a escravidão nos vários lugares onde ele viveu e que visitou, no Brasil, na África e sobre o Atlântico.
Boa parte do livro se dedica ao tráfico transatlântico de escravos num momento crucial, quando já proibido pelo Brasil e reprimido pela marinha britânica sobretudo nas costas africanas. O embate entre ingleses e traficantes foi longo e custoso para ambos os lados, centenas de navios foram apresados, o conflito teve uma face política e diplomática - de um lado os países importadores de cativos, como o Brasil, do outro a Inglaterra -, mas o livro se volta mais para os embates no mar e nos entrepostos do tráfico, que detalhamos. E Rufino no meio disso tudo. O livro tem ritmo de aventura, eu acho.
O Rufino é um personagem como o Eichmann foi para Hannah Arendt (Eichmann em Jerusalém), por exemplo? Um membro de uma engrenagem histórica e social, mas que não era necessariamente o mais ilustre, um líder, um mandante? Qual a importância de personagens assim para a historiografia?
Rufino foi um personagem bem menor para o escravismo do que Eichmann foi para o nazismo. Mas era uma importante pequena peça da máquina escravista atlântica, que ajudou (literalmente) a alimentar como cozinheiro de negreiro, mas também como pequeno traficante. Personagens de seu tope - não necessariamente com a mesma ocupação, mas libertos africanos - são cada vez mais o foco da recente historiografia, personagens cujas vidas, no mais das vezes, aparecem de relance, um flash apenas, em geral parte de episódios dramáticos, de crimes, revoltas etc. Dificilmente conseguimos dados para narrar um pedaço tão grande da trajetória de pessoas como Rufino.
Vou sair um pouco do tema do livro, para falar sobre seu trabalho na história da escravidão. O senhor já escreveu sobre a Revolta dos Malês, que é um fato histórico daqueles que a gente não aprende muito no colégio, não é? A história da escravidão no Brasil é "mal contada" nesse sentido? Nós a valorizamos?
Hoje encontramos episódios como a Revolta dos Malês em livros didáticos e em salas de aula, a coisa está melhorando sobretudo devido à lei que obriga a inclusão nos currículos escolares de temas como a história da África e do negro no Brasil. Mas essa história pode ser bem ou mal contada. Essa história não precisa ter o tom da vitimização somente. Acho melhor as crianças e adolescentes aprenderem que os escravos não foram vítimas passivas de suas circunstâncias, que resistiram como puderam a virar mera máquina de trabalho, que resistiram a isso de diversas formas, nem sempre através de atos heróicos, da rebeldia aberta, mas através de formas mais sutis de resistência, fazendo corpo mole, fingindo-se doentes, manipulando psicologicamente seus senhores, fugindo para uma festa, batendo atabaques, cultuando seus deuses, aprendendo a ler e escrever a língua do Corão.
É importante que os rebeldes explícitos como Zumbi, os malês, Manuel Congo e outros sejam lembrados, festejados e estudados, mas não devemos esquecer os heróis do dia a dia, anônimos, que foram a maioria dos escravizados.
Fonte: Histórica (Terra Magazine)
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