Por Karin Kreismann Carteri [i]
A concepção de patrimônio histórico-cultural teve seu nascedouro nas elites socioeconômicas européias e objetivava o estabelecimento e a manutenção do discurso semiótico contido nos bens patrimoniais através do culto aos mesmos. Os bens patrimoniais são predominantemente materiais e recentemente os “saberes”, “fazeres” e elementos naturais e ambientais foram incorporados aos patrimônios oficiais (O QUE...), sendo que estes bens materiais e imateriais se referem à identidade, à ação e à memória dos grupos heterogêneos formadores da sociedade brasileira
Embora o discurso formal pretenda incluir as manifestações multiculturais destes grupos, o patrimônio histórico-cultural é primeiramente originário das elites socioculturais e por estas imposto ao povo, que por sua vez nem sempre o aceita como tal. Segundo Byrne apud Funari [ii] os grupos dominantes promovem o “seu” patrimônio em detrimento do produzido ou oriundo dos grupos subordinados, propiciando um sentimento de desligamento entre esses grupos e o patrimônio. Essa ausência de laços de pertencimento pode, indubitavelmente, explicar parcialmente a epidemia de vandalismo que vem tomando o país.
Mesmo que não seja aceitável, é compreensível que haja desinteresse popular em preservar bens patrimoniais que lhe são indiferentes ou que os oprimem, e tanto o vandalismo quanto a indiferença repercutem a “carência de meios de auto-expressão das gentes contemporâneas [e a] pichação funciona como um palavrão que se libera [iii]”. (GASTAL apud VERAS, 2008). Assim o vandalismo é um libelo contra o patrimônio imposto e estranho aos perpetradores das depredações, pichações e furtos, que por meio dele “gritam” aos surdos ouvidos da sociedade a sua insatisfação perante a cultura “oficial” com a qual os bens culturais advindos de esferas culturais diversificadas contrastam, sendo muitas vezes por ela incompreendidos.
No olhar do vândalo, o patrimônio histórico-cultural “oficial” não lhe pertence e não dialoga com ele. Ao mesmo tempo, é exigido do vândalo um discernimento que ele não tem, uma educação que não lhe é oferecida e a conscientização que lhe é negada. Em contrapartida, no olhar das elites, o vandalismo reflete a “inferioridade cultural” de seus praticantes, estendida a todos os grupos subordinados, que são responsabilizados pela ação de alguns de seus membros. Ambas as esferas estão equivocadas, porém isto não torna o vandalismo algo tolerável como manifestação cultural.
O vandalismo é considerado um crime passível de punição, indo além de uma transgressão que revela a desvinculação entre o transgressor e a civilização [iv]. (ALVES apud VERAS, 2008). A Lei dos Crimes Ambientais, n° 9.605, em seu artigo 65 estabelece pena de detenção que varia de três meses a um ano e multa para quem conspurcar bens patrimoniais públicos ou privados. Em caso de danos a bens tombados, a pena mínima é de seis meses. (BRASIL...). A identificação e a punição dos vândalos são imprescindíveis, mas não é uma solução para o problema que não acontece mais “só” por diversão ou para complementar a renda do vândalo, entre outras explicações para o fenômeno. O patrimônio histórico-cultural tem sido cotidianamente vandalizado e as ações públicas não se mostram eficazes ou suficientes para impedir o avanço da degradação, conseqüência da surdez social e da inépcia de governos, de educadores e cidadãos.Considerando o patrimônio histórico-cultural parte da herança comum da nação, a sua conservação é de interesse de todos os grupos socioculturais que a constituem e preservá-lo possibilita conservar a memória e a identidade nacional, que são o conjunto das memórias e das identidades desses grupos. Se nem todos esses grupos reconhecem o patrimônio histórico-cultural como parte de suas próprias culturas, revelando essa dissociação de forma contundente pelo vandalismo, constata-se que há uma lacuna a ser preenchida por ações educativas que permitam a esses grupos perceberem que os bens patrimoniais somam elementos relevantes para a cultura como um todo, não mais servindo ao discurso opressivo das elites que o conceberam.
Para tanto, a educação patrimonial apresenta-se como possibilitadora de laços de reconhecimento, pertencimento, apropriação e reciprocidade entre pessoas e patrimônios, contribuindo para a empatia patrimonial e para a coibição do vandalismo. A educação patrimonial deve não apenas ser incluída no ensino formal (IPHAN DEFENDE...) como também extrapolar o espaço físico de museus e demais instituições culturais (CHIOZZINI) através de
[…] projetos educativos voltados para a disseminação de valores culturais, formas e mecanismos de resgate, preservação e salvaguarda, assim como para a recriação e transmissão desse patrimônio às gerações futuras [sendo] sobretudo, um projeto de formação de cidadãos livres, autônomos e sabedores de seus direitos e deveres. [Baseados] no respeito à diferença e valorização da diversidade e que, desta forma, resiste aos processos de homogeneização do saber e sua transmissão, assim como de globalização indiscriminada e esmagamento dos valores culturais. [Que] constrói com segurança e bom fundamento a ponte necessária entre o passado e o futuro; que relativiza o tempo e intensifica a responsabilidade do papel de cada um perante sua cultura e a dos outros. (CASCO)
A educação patrimonial permite aglutinar a recuperação e preservação do patrimônio histórico-cultural ao desenvolvimento econômico e social ao contemplar diversos itens que permeiam o desenvolvimento humano e promovem a sustentabilidade econômica dos grupos sociais heterogêneos e possibilita a formação de uma cidadania plena, onde o patrimônio histórico-cultural adquire um significado relevante para a percepção do cidadão como pertencente ao seu locus sociocultural.A universalização da política de educação patrimonial é um dos grandes desafios a serem enfrentados pelos governos e instituições, pois permitirá que se trabalhe o patrimônio não como uma exceção dentro do país, mas como algo corriqueiro e que estimule a consciência dos cidadãos (IPHAN DEFENDE...) e o seu engajamento na identificação e na preservação do patrimônio histórico-c
O Programa Monumenta do IPHAN apóia projetos de educação patrimonial “[...] que promovam a compreensão e a valorização dos aspectos ligados ao patrimônio material e imaterial brasileiro. [E visem] ampliar o conhecimento sobre o patrimônio do sítio histórico, lançando mão de recursos como cursos e vivências com a população local”. Essas propostas “[...] devem atuar como referência para novas iniciativas da comunidade e dos setores público e privado, fomentando a sua participação como agentes co-responsáveis pela preservação do patrimônio cultural brasileiro”.
Destacam-se ainda as que “[...] as ações de fortalecimento de atividades produtivas tradicionais têm sido importante instrumento de preservação do patrimônio cultural, valorizando manifestações culturais próprias dos municípios, tais como: artesanato, gastronomia, arte, música, dança, teatro, arquitetura, tradições e história”. O Monumenta também abrange o turismo cultural, promovendo-o através da elaboração de roteiros turísticos e de inventários de atrativos culturais apresentados e aprovados. Em 2007 foram contempladas 48 ações educativas e 39 atividades de promoção, em 20 estados e cerca de 60 municípios de todo o Brasil em 87 centros históricos brasileiros. (MONUMENTA..., passim).
O relacionamento responsável com os bens patrimoniais é um direito de todos os grupos sociais, que devem participar desta política de educação patrimonial e de tombamento de bens que são representativos de seus grupos culturais específicos, constituindo a cultura nacional como um todo. É importante, ainda, atuar no sentido em que o patrimônio seja usufruído por todos e não um privilégio de poucos, visto que o
[...] patrimônio é diretamente originário da vida dos que nos precederam. É dessa própria vida que ele nos dá o testemunho. A sua conservação não pode ser feita imobilizando-o para sempre. A conservação do patrimônio [é] a manutenção em vida do que nos liga ao passado, mas que não pode sobreviver senão nos acompanhando em nossa progressão em direção ao futuro. Transmitir a herança não é esterilizá-la, é enriquecê-la.
Por isso, não só uma autêntica conservação do patrimônio não exclui a criação contemporânea, como, ao contrário, ela a pede, como seu complemento indispensável. É preciso, portanto permanecer atento para que as políticas patrimoniais não se transformem em uma mumificação dessa herança. Esta seria uma outra forma de sufocá-la e, portanto, de negar a sua dimensão patrimonial, porque o patrimônio só existe se estiver integrado à vida de hoje. Não existe patrimônio sem essa íntima reapropriação. (VINCENT).
O vandalismo alerta para a ausência de vínculos entre os habitantes e o seu habitat, para a ineficácia das atividades de inclusão sociocultural e conclama pela implantação de soluções efetivas que impeçam sua continuidade. Os vândalos atingem os bens culturais representativos da cultura preponderante sobre as demais e é preciso garantir que os bens patrimoniais não sejam apenas os bens “oficiais”, mas também os advindos das culturas “subordinadas” e que o estabelecimento de um patrimônio histórico-cultural não signifique seu cerceamento ao contato humano, mas sim a sua participação na vida da comunidade como um todo.
Mais do que de tinta antipichação, disque-denúncia, multas, entre outras sanções, urge que a sociedade assuma a circularidade cultural que a norteia e reestruture sua política de gestão patrimonial, dialogando com os grupos multiculturais que a compõem, mas que nem sempre conseguem expressar suas culturas. A preservação patrimonial deve fundamentar-se em um processo contínuo de educação das comunidades para a valorização de sua memória e de suas tradições culturais, contidas em seu patrimônio material e imaterial.
O respeito à pluralidade de legados culturais da sociedade e a sua preservação torna inadiável a conscientização e o compromisso de pessoas e instituições à necessidade premente de criação e implementação de programas educativos que contemplem o patrimônio histórico-cultural, direcionados à formação, informação e sensibilização de toda a comunidade em relação aos seus bens patrimoniais e que focalizem prioritariamente o combate aos atos de vandalismo.
Referências
BRASIL. Lei n° 9.605, de 12 de outubro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: Acesso em: 10 jul. 2008.
CASCO, Ana Carmen A. J. Sociedade e educação patrimonial. Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2008.
CHIOZZINI, Daniel. Educação além dos muros. Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2008.
FUNARI, Pedro Paulo A. Os desafios da destruição e conservação do Patrimônio Cultural no Brasil. Trabalhos de antropologia e etnologia, 2001, Porto, Portugal. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2008.
IPHAN DEFENDE conservação do patrimônio histórico como matéria do ensino formal. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2008.
MONUMENTA divulga resultado dos editais de 2007. Disponível em: . Acesso em 12 jul. 2008.
O QUE é o patrimônio cultural. Disponível em: . Acesso em: 9 de jul. 2008.
VERAS, Eduardo. Um patrimônio que desmorona. Zero Hora, Porto Alegre, 2008. Disponível em: . Acesso em: 8 jul. 2008.
VINCENT, Jean-Marie. Conservação e valorização do patrimônio. Disponível em: . Acesso em: 8 jul. 2008.
[i] Bacharel em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Educação e Patrimônio Histórico-Cultural pelas Faculdades Porto-Alegrenses (FAPA). Bibliotecária-Coordenadora do Colégio Sévigné (CRB10/1382, em licença). Colaboradora da Revista Museu.
[ii] Byrne, D. Western Hegemony in archaeological heritage management. History and Anthropology, n.5, p. 269-276, 1991.
[iii] Em entrevista na matéria citada.
[iv] Idem.
Fonte: Revista Museu
Disponível em: http://www.revistamuseu.com.br/artigos/art_.asp?id=17864
Noé,
ResponderExcluirobrigada por divulgar meu texto.
Acredito que a educação patrimonial é fundamental para a diminuição, e, melhor ainda, para a erradicação do vandalismo.
Um abraço!
Sem dúvida Karin
ResponderExcluirAcesse matéria que fala de importante vitória da cidadania, em defesa da preservação do patrimônio histórico e da cultura, SENTENÇA PROCEDENTE EM AÇÃO POPULAR. ACessar em: http://valdecyalves.blogspot.com/2011/04/acao-popular-julgada-procedente-materia.html
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