sábado, 9 de abril de 2011

O regime autoritário de 1964


Por João Rego*


Não se pode compreender o SPB-Sistema Partidário Brasileiro 79(82)/90 sem situá-lo no contexto da fase final do regime autoritário de 64, tendo sido sua criação uma conseqüência e parte da estratégia de distensão do próprio regime.
O golpe militar de 1964 teve sua articulação coordenada por três forças políticas que já haviam marcado sua posição no processo político na década de 50: o capital multinacional associado ao nacional, o capital de Estado e os militares(1).
A crise política que levou o país à ruptura de sua primeira experiência democrática, iniciada com o fim do Estado Novo, em 1945, possibilitou que, em 1965, as forças golpistas após as prisões, expurgos e IPM's(2) viessem, com o Ato Institucional Nº 2, extinguir todos os partidos que haviam florescido durante o período de 1945(3).
Encerrava-se assim o primeiro ciclo de uma experiência multipartidária efetiva onde a marca principal foi o surgimento de partidos com abrangência nacional e perfis ideológicos distintos, acompanhando o desenvolvimento urbano-industrial ocorrido na década de 50.
Entretanto, as forças golpistas que haviam articulado a derrubada do governo João Goulart não eram fruto de uma ação política extemporânea, puramente movida pela emoção do momento. Pelo contrário, eram resultado de uma competente articulação político-ideológica movida pela Ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento, cujo principal pólo irradiador era a ESG -Escola Superior de Guerra-, que, com o apoio do capital multinacional, do capital nacional, associado ao estrangeiro, e com a participação do governo norte-americano, através da CIA, conseguiram construir oportunidades sobre o aparente clima de caos político-social, favorecendo a queda do governo João Goulart.
A Ideologia de Segurança Nacional foi transplantada para o Brasil após a 2ª Guerra Mundial, quando vários oficiais superiores foram treinados no National War College (centro de treinamento do alto escalão do exército norte-americano). O objetivo principal desta ideologia era garantir metas de segurança para implantar uma geo-política para todo o Cone Sul do Continente Americano, capaz de bloquear o perigo expansionista do comunismo internacional.
A Ideologia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento representava uma completa weltanschauung que tinha como meta criar condições para, através do fortalecimento do Estado, construir um modelo de desenvolvimento econômico extremamente favorável à entrada do capital estrangeiro, pretendendo implantar uma infra-estrutura capaz de transformar o país em uma potência econômica. Para que isto pudesse ocorrer, era necessário manter sob controle o crescimento dos movimentos sociais organizados que, cada vez mais, ocupavam espaços no cenário político(4), criando um clima político-social de grande instabilidade, ameaçando os interesses da classe dominante nacional.
Com o objetivo de tornar o país um ambiente viável e atraente ao desenvolvimento do capital, foram tomadas decisões radicais no sentido de controlar a classe trabalhadora. Foi instituído, logo após o golpe de 64, o FGTS(5), o qual tinha como objetivo substituir a figura da estabilidade por tempo de serviço, tornando mais flexível para o empresário a relação com a classe trabalhadora. Foi também criado o aparelho repressivo, composto pelos SNI e órgãos de informação das Forças Armadas como o DOI-CODI, no Exército, cujo objetivo era garantir de forma eficiente o bloqueio e/ou a eliminação de qualquer força "contra- revolucionária" que exercesse pressão ou ameaçasse o Estado de Segurança Nacional.
Com o recrudescimento do regime, instituiu-se a figura do "inimigo interno", passando a ser potencialmente suspeito todo e qualquer cidadão.
Como o golpe militar conseguiu obter apoio de grande parte da população, principalmente da classe média - esta se sentia ameaçada de perder seus privilégios diante das "reformas de base"(6) - , e como não se tratava apenas de um golpe circunstancial, e sim de uma planejada estratégia de ação com objetivos de dominação política de longo prazo, as forças que articularam o golpe perceberam que, mantendo o congresso funcionando, uma vez que já havia sido efetuada a "Operação Limpeza", cassando deputados, governadores e funcionários civis graduados que serviram ao governo deposto, poderiam obter legitimidade junto à população. A legitimação era uma preocupação dos militares, principalmente porque a destituição de João Goulart havia sido, segundo os golpistas , para garantir a "normalidade democrática".
Com o Ato Institucional Nº 1. já ficavam evidentes os objetivos de longo prazo. Citamos trechos do AI 1:
(...) O Ato Institucional que é hoje editado pelos comandantes em Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação em sua quase totalidade, se destina a assegurar, ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil.(citado in MOREIRA ALVES;1984:p.53)
Com um objetivo tão amplo, caracterizava-se a intenção de uma longa permanência dos militares no poder. Diferentemente de outras experiências intervecionistas já ocorridas, nas quais os militares sempre devolviam o poder aos civis, aquela iria se prolongar por longos 21 anos.
Garantidos pelos resultados da "Operação Limpeza", e com total controle de todo o poder político, os militares decidem preservar a Constituição de 1946, com todas as ressalvas contidas no AI Nº 1, decidindo manter o Congresso, já "devidamente" mutilado, funcionando:
Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República (...) Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes constantes do presente Ato Institucional.(citado in MOREIRA ALVES;1984:p.53)
Com as eleições para governadores em 11 Estados da Federação, em 1965, as quais estavam previstas na Constituição de 1946, a oposição consegue eleger os governadores de dois Estados importantes - Guanabara e Minas Gerais -, causando grande preocupação aos militares, pelo latente potencial contestador que poderia vir a ameaçar a estabilidade do governo Castelo Branco.
Assim, por decreto, o governo instituiu em 26 de outubro de 1965, o Ato Institucional Nº 2, cujos objetivos eram controlar o Congresso Nacional, através de um maior fortalecimento do poder executivo, cercear o poder judiciário e controlar os mecanismos de representação política.
Quanto a este último objetivo, em seu Artigo Nº 18, o AI-2 extinguiu todos os partidos políticos existentes, estabelecendo rígidas normas para a criação de novos partidos.
Assim, com o Ato Institucional Nº 2, foram criados dois partidos: a ARENA - Aliança Renovadora Nacional e o MDB - Movimento Democrático Brasileiro. No primeiro estava todo o conjunto de forças que haviam apoiado a ruptura do sistema democrático; e no segundo, o que havia restado da oposição ao regime autoritário.
Estava criado um simulacro de sistema partidário para dar características de normalização ao regime militar. O MDB tem como única estratégia de oposição tentar utilizar os espaços, cada vez mais reduzidos, para atuar como pólo de questinamento ao estado de exceção.
Através de decretos-lei impostos pelo poder executivo, era praticamente impossível para a oposição atuar com chances concretas de ameaçar a estabilidade dos militares. A Lei da inelegibilidade, o decurso de prazo e outros mecanismos casuísticos e autoritários deixavam claro que o regime autoritário conduziria o processo político com o controle milimétrico da situação.
Entretanto, a sociedade civil, através dos movimentos estudantis, organizações sindicais, Igreja progressista, conseguia exercer , com demonstrações de rua, pressão em favor do fim do regime de exceção e sua política econômica profundamente anti-social. Foi em março de 1968, com a morte do estudante secundarista Edson Luis, numa demonstração estudantil no Rio de Janeiro, que houve demonstrações de massa com proporções de rebelião social.
Em abril do mesmo ano, houve a ocupação da Fábrica Belgo-Mineira, por parte dos operários, mantendo como reféns seus diretores. A pressão da sociedade civil começava a preocupar o regime militar. Foi, entretanto, com a criação da Frente Ampla, abrangente movimento de oposição, que contava inclusive com a participação de políticos que haviam dado apoio ao golpe, como Carlos Lacerda, e dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart, que os militares decidiram "endurecer".
Foi decretado o Ato Institucional Nº 5, em 13 de dezembro de 1968, criando condições de absoluto controle sobre todo o processo político, favorecendo a mais ampla utilização do aparato repressivo do Estado de Segurança Nacional.
Estava criado, assim, o Estado hobbesiano, o super-leviatã, mencionado por Golbery, ainda na década de 50, em seu livro "Geopolítica do Brasil".(GOLBERY;1981)
O recrudescimento do regime militar projetou uma situação onde o espaço político para a oposição fora quase totalmente reduzido, empurrando setores da oposição para o recurso da luta armada. Foi o período mais negro de toda a história do regime autoritário de 64. Sucederam-se atentados, seqüestros de membros do corpo diplomático e assaltos a bancos para financiar operações terroristas por parte de tais setores. Em contrapartida, o regime militar atuou com mão de ferro, conseguindo estancar o processo da luta armada apenas em 1974.
Foi nas eleições de 1973, onde seria escolhido pelo voto indireto o presidente da República, que o MDB, apresentando uma anticandidatura, - isto porque o Congresso Nacional totalmente manietado, apenas iria referendar o nome do novo general para o exercício da Presidência -, começou a exercer o papel de efetivo partido de oposição, servindo como elemento aglutinador de todos os segmentos da sociedade civil interessados em pressionar o governo pelo fim do regime autoritário. Assim, entidades da sociedade civil, tais como a Igreja, a OAB -Ordem dos Advogados do Brasil - e a ABI - Associação Brasileira de Imprensa- passaram a, articuladamente, exercer pressão contra o governo dentro do espaço da política formal permitido.
Esta atuação do único partido de oposição ao regime militar se repetiria de forma cada vez mais aprofundada nas eleições de 1974, 1976, 1978 e 1982 (este ano já como o PMDB). Com as eleições para senadores, deputados federais e deputados estaduais, em 1974, o MDB, pela primeira vez, obtém mais votos que a ARENA, tomando de surpresa os setores governistas, que imaginavam que, com a política do "milagre econômico", a população estaria menos inquieta. Foi um erro de avaliação, pois as eleições de 1974 foram consideradas como um plebiscito: as pessoas votaram mais "contra" o governo do que na oposição.
O governo reagiria implantando mecanismos de cerceamento à ação política, como a Lei Falcão, que proibia que durante os períodos pré-eleitorais, os candidatos se utilizassem dos meios de comunicação. Era apenas permitida a exposição da fotografia e a breve leitura do currículo dos mesmos.
Entretanto, apesar de todos os controles, o MDB continuava crescendo eleitoralmente. Nas eleições municipais de 1976, a ARENA obteve cerca de 35% dos votos, enquanto o MDB teve 30%. Considerando que toda a máquina administrativa federal e estadual havia sido colocada à disposição da ARENA para a compra de votos e utilização de velhas práticas clientelistas, tais conquistas da oposição democrática se tornavam ainda mais valorizadas.
O SNI indicava ao governo do General Geisel que se não fosse tomada nenhuma providência, a oposição poderia, em curto espaço de tempo, obter a maioria no Congresso, transformando-se em um sério fator de desestabilização dos interesses do regime autoritário. Assim, após fechar o Congresso Nacional, em abril de 1977, o presidente Geisel decreta a Emenda Constitucional Nº8, que altera os critérios das eleições, com o objetivo explícito de bloquear o avanço eleitoral do MDB. Essa emenda ficou conhecida como o "Pacote de Abril".
Apresentamos abaixo o resumo das principais medidas desse mecanismo autoritário, cujo objetivo era garantir, de forma excusa, a maioria no congresso:
1.) O Artigo 13 tornava permanente as eleições indiretas dos governadores de Estados.
2.) O Artigo 39 da Constituição foi alterado, de modo a determinar o número de cadeiras de cada Estado na Câmara dos Deputados não (como anteriormente) em proporção ao número de eleitores registrados no Estado, mas em proporção à sua população total.(...) A nova lei aumentava a representação dos Estados pobres do Norte e do Nordeste, onde os índices de analfabetismo são muito altos e onde a ARENA era mais forte devido à prática clientelista.
3.) O Pacote de Abril alterou as disposições de renovação do Senado. Nas eleições para substituição de dois terços dos membros, no entanto, somente uma de cada duas cadeiras disponíveis seria preenchida por voto popular direto; a outra seria ocupada por senador eleito indiretamente, segundo os mesmos procedimentos e pelo mesmo colégio eleitoral encarregado de escolher os governadores de Estados.(...) Os senadores eleitos pela via indireta passaram a ser conhecidos popularmente como "senadores biônicos".
4.) Outra modificação foi a redução do colégio eleitoral que escolheria o Presidente da República, diminuindo o múmero de delegados das Assembléias Estaduais.
5.) Redução da exigência da maioria de dois terços do Congresso Nacional para a maioria absoluta, facilitando a aprovação de emendas constitucionais, sem correr o risco da oposição bloquear sua aprovação.
6) Finalmente, uma importante cláusula do Pacote de Abril estendia as restrições da Lei Falcão sobre o uso da televisão e do rádio das eleições municipais às estaduais e federais. O silêncio seria imposto em todas as eleições, negando-se à oposição a oportunidade de debater e criticar as políticas do Estado.(citado in MOREIRA ALVES;1984:p.195,195)
Apesar de todos os casuísmos do "Pacote de Abril" para deter o avanço do MDB nas eleições de 1978, o partido de oposição tornava-se cada vez mais estruturado, aglutinando em seu meio, de forças conservadoras a socialistas e comunistas. Com o cerceamento imposto pelo governo, impedindo o acesso aos meios de comunicação, o partido viu-se forçado a fortalecer seus vínculos com os movimentos de base. Estas organizações se destacavam pela luta em defesa dos direitos humanos, liberdade política, organização sindical e pela mobilização dos setores marginalizados da estrutura sócio-econômica.
Foi a grande contrapartida, inesperada pelo governo, em decorrência do "Pacote de Abril". O MDB tornava-se um partido que perpassava os mais diversos segmentos da sociedade, das mais distintas posições ideológicas aos movimentos sociais de base. Entretanto, apesar de ter obtido maior quantidade de votos para o Senado, graças ao dispositivo de senador eleito pela via indireta, a ARENA garantiu maioria naquela casa legislativa. Com relação à Camara dos Deputados, apesar do MDB ter obtido um crescimento significativo, não conseguiu suplantar o partido do governo.
Apesar da ocorrência de diversas eleições - excluindo sempre eleições para o cargo de governador -, o aparato repressivo continuava atuando firmemente, sobretudo, contra a classe trabalhadora, que começava a dar sinais de reorganização com o surgimento de novas lideranças.
Em decorrência da ação repressiva por parte da facção da "linha dura" do governo, são assassinados, sob tortura, o jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975; e o metalúrgico Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976, ambos nas dependência do DOI-CODI do II -Exército. Uma onda de indignação varre o país e o governo Geisel passa por grande crise interna, que foi solucionada com a destituição do cargo de Comandante do II Exército, do general Ednardo D'Ávila de Mello.
Em 1978, o poder judiciário dava sinais de independência com o ganho da causa impetrada pela viúva de Vladimir Herzog, responsabilizando o governo federal pelo assassinato do seu marido. Esta ação viria a surtir efeito multiplicador dentro da estrutura do Poder Judiciário, favorecendo a luta de todas as entidades civis engajadas na redemocratização e pela defesa dos direitos humanos. Entidades como a OAB, ABI e CNBB aumentam seu poder de pressão, reividicando a extinção dos mecanismos de exceção e a volta do habeas corpus e da liberdade de imprensa.
É, ainda, em 1978 que o governo Geisel, através de negociações com as lideranças da oposição, envia ao congresso um pacote de reformas contidos na Emenda Constitucional Nº 11. Isto significava, na prática, o fim do AI 5, que foi substituído por outros mecanismos mais brandos de controle político e social.
Com o fim do governo Geisel, estava concluído o primeiro ciclo da "distensão" política, tendo sido preparado o terreno para dar continuidade ao distencionamento político, com o governo do seu sucessor, o General João Figueiredo. Este, que seria o último dos generais a governar o país, estabeleceu como meta uma maior liberalização do regime autoritário, com vistas à transição para a democracia. Este objetivo foi chamado de política de "abertura".
Importante destacar que, por mais negociações que o governo estabelecesse com setores da elite da oposição, em nenhum momento se viu ameaçado. Pelo contrário, muito bem apoiado em seu aparato repressivo, o governo não hesita em agir com firmeza, reprimindo principalmente os movimentos reinvidicatórios da classe trabalhadora. Citamos texto de Maria Helena Moreira Alves (MOREIRA ALVES;1984) o qual resume bem este período político:
Como a política de "distensão", a de "abertura" compreendia uma série de fases de liberalização, planejadas e cuidadosamente controladas pelos estrategistas políticos do Estado. Seria aberto um espaço político suficiente para conter a oposição de elite, na esperança de obter para o Estado de Segurança Nacional maior estabilidade e apoio. Por outro lado, os parâmetros da "democracia forte" eram definidos de modo a limitar a participação de setores da população até então excluídos e permitir que o Estado determine qual é a oposição aceitável, e qual é intolerável. Grupos ligados aos movimentos sociais de trabalhadores e camponeses, fossem seculares ou vinculados à Igreja, enfretaram repressão contínua e sistemática. Outros setores, que não eram considerados suficientemente organizados para configurar "antagonismo" ou "pressão" - tal como são definidos na Doutrina de Segurança Nacional -, puderam reorganizar-se e participar das decisões governamentais.(citado in MOREIRA ALVES;1984:p.225)
Nesse período além de um grande reflorescimento dos movimentos sociais de bases, tais como movimentos de bairros e Comunidade Eclesiais de Base, renovou-se principalmente, o movimento sindical na cidade e no campo.
Foi este movimento sindical, sobretudo o localizado no maior centro industrial do país - São Paulo - que iria detonar o mais importante impacto questionador ao regime militar. Com as greves de 1978, 1979 e 1980, o movimento sindical paralisa a nação e mostra que o Estado de Segurança Nacional tinha também seus limites. Articulados em uma eficiente e descentralizada estrutura organizacional, o movimento sindical foi capaz de continuar deflagrando as greves até mesmo quando se encontravam presos os seus principais líderes.
Ressalte-se que as reinvidicações da classe trabalhadora ultrapassavam as questões meramente de interesses de classe. Na pauta de reinvidicações, havia desde conquistas salariais e direito de maior autonomia e organização dos sindicatos, até o fim do regime de exceção, exigindo eleições diretas para todos os níveis, liberdade de imprensa, anistia política e defesa dos direitos humanos.
A relação entre a sociedade civil e o Estado autoritário, estava caminhando para uma situação de perigoso descontrole social. O General Golbery, principal ideólogo da Doutrina de Segurança Nacional, passa a defender uma estratégia de descompressão, decentralizando o poder executivo e aumentando a liberalização política. Uma das principais preocupações dos estrategistas políticos do regime autoritário era a natureza bipolar - do ponto de vista partidário - do conflito entre governo e oposição, esta materializada pelo MDB, que cada vez mais contava com expressivo apoio da população, como vinham demonstrando as sucessivas eleições.
As eleições ocorridas no período assumiam, cada vez mais, o aspecto de eleições plebiscitárias sobre o posicionamento do eleitorado em relação ao governo. Com apenas dois partidos, essa bipolarização criava um ambiente favorável para se ampliarem as tensões político-sociais, desgastando ainda mais o governo. O MDB , apesar de nele conviverem as mais diferentes correntes ideológicas, para o eleitorado era sempre o partido símbolo da oposição. A solução identificada pelo General Golbery, cujo objetivo era enfraquecer os oposicionistas, protegendo o Estado e sua estratégia de liberalização, foi instituir o multipartidarismo, causando um estilhaçamento no sistema de oposições.
Assim foi que, em 1979, duas importantes leis foram decretadas por parte do governo. A primeira foi a Lei de Anistia Política, bandeira das oposições desde o AI-1, e que vinha sendo motivo de fortes pressões por parte de todos os setores da sociedade. O governo Figueiredo conseguiu, após intensas negociações com a elite da oposição e com os setores da linha-dura das forças armadas, chegar a uma proposta de anistia parcial, mas que representava um grande passo para a redemocratização. A anistia possibilitou o retorno ao cenário político de importantes líderes que haviam sido cassados e exilados a partir de 1964. A segunda foi a "Nova Lei Orgânica dos Partidos Políticos". Com ela extinguiam-se a ARENA e o MDB, sob forte protesto dos militantes da oposição, e se estabeleciam novas regras para a criação de outros partidos.
Vale ressaltar que a base jurídica que deu suporte ao sistema partidário surgido em 1979 não foi resultado de pressão política da oposição. Talvez, com o processo de liberalização política, isto até viesse a acontecer , mas o que se seguiu foi uma estratégia de fragmentação da oposição por parte do governo autoritário, que, pelas informações que o SNI detinha, sabia que o MDB obteria a maioria no Congresso Nacional nas próximas eleições.
Veja-se abaixo esclarecedor texto sobre a estratégia do governo nesta fase da vida política nacional:
Tornava-se portanto necessário, como admitiu o próprio General Golbery do Couto e Silva, tentar dividir e fragmentar a oposição e controlar cuidadosamente a organização dos partidos políticos. Impunha-se, além disso, agir com rapidez na remodelação do sistema partidário, enquanto o governo ainda detinha maioria no Congresso (garantida pelos senadores "biônicos"). A Nova Lei Orgânica dos Partidos Políticos, de 1979, aprovada no Congresso sob intensos protestos do MDB, deve ser vista, assim, como parte do "plano-mestre" a que se referiu Golbery em sua conferência na ESG.Os dispositivos da lei redefiniam o cenário da política formal e deixavam bem claro o principal objetivo do Estado: garantir o controle governamental sobre a oposição sem sacrificar as vantagens legimitadoras de "eleições livres".(MOREIRA ALVES;1984:p.269,270)
Assim, o Sistema Partidário Brasileiro de 1979 surge efetivamente para ser a principal instituição responsável pela materialização do processo de transição para a democracia. Entretanto, as condições que permitiriam sua criação foram concebidas pelo Estado de Segurança Nacional dentro de uma estratégia prevista e absolutamente controlada pelas forças governistas, cujo objetivo era dividir as oposições e adiar ainda mais a saída do poder.
A ARENA havia seguido sua trajetória apoiando e dando suporte aos atos do regime autoritário. Quanto ao MDB, que logo de início não detinha a confiança das forças democráticas (estas deflagaram campanhas do voto nulo até antes das eleições de 1974, numa demonstração de desconfiaça sobre o sistema bipartidário artificialmente criado pelo AI-2), foi se transformando, à medida que interagia contra os diversos governos militares que ocuparam o poder de 1964 a 1984 , em único espaço disponível legal para a oposição atuar contra o regime autoritário. Assim, na medida em que o Estado de Segurança Nacional foi agredindo a sociedade brasileira com a brutalidade do seu aparato repressivo, setores como a Igreja Católica, a ABI e a OAB, entre outros foram se aglutinando em torno do MDB, convergindo todos os esforços contra o Estado de exceção.
Uma interessante análise está na tese de Maria Helena Moreira Alves (MOREIRA ALVES;1984), a qual aborda a relação entre o Estado de Segurança Nacional, gerido pelos militares, e a oposição, sob a ótica de uma relação dialética que conseguiu, em certos aspectos, moldar a forma repressiva de dominação política aplicada contra as lideranças da sociedade civil. A reação da sociedade civil, por sua vez, retroalimentava o sistema para definir novos espaços de maneira a conduzir à consolidação do super leviatã, que era o Estado de Segurança Nacional.
Assim, do papel de legitimador do novo regime, o sistema partidário criado pelo Estado em 1966, passou a garantir o funcionamento de um partido de oposição, o MDB, o qual foi evoluindo até assumir funções de principal órgão canalizador de toda a insatisfação e questionamento da sociedade civil contra o regime autoritário. O MDB, devido ao fato do simulacro de sistema partidário ser bipartidário, adquiriu características de frente partidária, abrigando militantes dos mais variados perfis ideológicos, inclusive facções que representavam partidos como o PCB, por exemplo. Suas principais plataformas políticas sempre foram o fim do Regime de Exceção, e a defesa dos direitos humanos, denunciando, sempre que podia, a arbitrariedade do sistema repressivo.
Com esta apresentação de como se deu o funcionamento do regime autoritário na sociedade brasileira, entre 1964 e 1984, em sua relação com os partidos políticos, objetivou-se construir uma visão panorâmica do ambiente histórico onde ocorreu o ressurgimento do multipartidarismo no Brasil, objeto de investigação desta pesquisa. No próximo item será abordado o SPB pós-79, sob a ótica predominante do conceito de transição de regimes autoritários para a democracia.
João Rego é cientista político e psicanalista
Texto extraído do livro As Bases Sócio-econômicas dos Partidos Políticos no Brasil 1982/90. Ed Massangana, 1997 Recife
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Notas de Rodapé
* João Rego é cientista político e psicanalista.
(NR.1)Para maior aprofundamento de como se deu a articulação das forças políticas e econômicas que deflagaram o Golpe Militar de 1964 ver DREYFUSS;1980.
(NR.2)O IPM - Inquérito Policial Militar foi um poderoso mecanismo de poder, criado através de decreto-lei, em 27 de abril de 1964, destinado a operacionalizar a Grande Estratégia da Doutrina de Segurança Nacional. Comissões especiais de inquérito foram criadas em todos os níveis de governo, em todos os ministérios, empresas estatais, universidades federais e em entidades ligadas ao governo federal, com o objetivo de identificar e expurgar da estrutura governamental as pessoas identificadas como "subversivas".
(NR.3)Durante o período de 1945 a 1964 apenas o PCB -Partido Comunista Brasileiro- não atuou legalmente. Foi cassado em 1947, após dois anos de existência legal. O SPB 45/64 é atingido pelo colapso do regime democrático com 13 partidos políticos em plena atividade no cenário político nacional.
(N.R4) No período pré-64 havia uma importante efervescência dos movimentos sociais urbanos e rurais em todo o país. O clima da revolução cubana estimulava de forma evidente as expectativas dessas lideranças no sentido de forçar transformações na estrutura social, política e econômica do país.
(N.R5) O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, foi criado em 1966 (entrou em vigor em 1967), como uma opção a uma lei trabalhista mais antiga, que obrigava o empresário a pagar idenizações pesadas aos funcionários demitidos sem justa causa.
(N.R6)As "reformas de base" era o nome dado às políticas de transformação na estrutura econômica e social propugnadas pelo governo João Goulart. Estas políticas tinham um forte apoio das forças de esquerda e visavam a reforma educacional, uma reforma agrária e mais outras transformações em favor da classe trabalhadora.
A partir deste ponto, nossa descrição segue os caminhos trilhados por Maria Helena Moreira Alves (MOREIRA ALVES;1984), pela sua completa e importante interpretação do período autoritário.
Gen. Castelo Branco foi o primeiro de uma série de generais do exército que dominaram autoritariamente a nação de 1964 a 1985.
Citamos trecho da obra de MOREIRA ALVES(1984)na qual apresenta sumariamente a abrangência do AI 5.:" Os poderes atribuídos ao executivo pelo Ato Institucional Nº 5, podem ser assim resumidos : 1) poder de fechar o Congresso Nacional e as assembléias estaduais e municipais; 2) direito de cassar os mandatos eleitorais de membros dos Legislativo e Executivo nos níveis federal/estadual e municipal; 3) direito de suspender por dez anos os direitos políticos dos cidadãos; 4) direito de demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade funcionários da burocracia federal/estadual e municipal; 5) direito de demitir ou remover juízes, e suspensão das garantias ao judiciário de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade; 6) poder de decretar estado de sítio sem qualquer dos impedimentos fixados na Constituição de 1967; 7) direito de confiscar bens como punição por corrupção; 8) suspensão da garantia de habeas corpus em todos os casos de crimes contra a segurança nacional; 9) julgamentos de crimes políticos por tribunais militares; 10) direito de legislar por decreto e baixar outros atos institucionais ou complementares; e finalmente 11) proibição de apreciação pelo judiciário de recursos impetrados por pessoas acusadas em nome do Ato Institucional Nº 5.( citado in MOREIRA ALVES;1984:p.131)
Sobre o impacto que as eleições de 1974 exerceram sobre o regime autoritário ver LAMOUNIER & CARDOSO coord.;1978 e LAMOUNIER, org.;1980.
SNI- Serviço Nacional de Informação.
Um dos movimentos mais fortes e organizados foi o das Comunidades Eclesiais de Base. Oriundo da nova prática política da Igreja Católica na America-Latina, teve como base teórica a Teologia da Libertação, chegando a formar uma gigantesca malha de ativistas articulada na base social do país.
A greve dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo em 1979, deflagrou a maior onda de greves da história do país, paralizando cerca de 3.000.000 (tres milhões) de trabalhadores em 15 estados da federação.
Lei de Nº 6.683, de 28 de agosto de 1979.
Lei Nº 6.767, de 20 de dezembro de 1979
Ver esclarecedora Tabela 9.1- CICLOS DE REPRESSÃO E LIBERALIZAÇÃO in MOREIRA
LVES;1984:p.319.

Texto Extraído do site CMI - Mídia Independente.
Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2004/03/276660.shtmlA

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