segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O Mito do Gaúcho, por Moacyr Flores

A história dos povos é rica em manipulações de toda a espécie. Estas manipulações fazem parte da política cultural de determinada época e do engajamento do historiador ou do literato. Muitas vezes os fatos são manipulados deliberadamente durante seu processo, ou outras vezes nas gerações posteriores que criam e forjam mitos de acordo com a religião, a filosofia ou o imaginário dos intelectuais.

Herôdoto, ao escrever sua História, afirmou que não é possível confiar nos poetas, porque eles, embora conhecendo os fatos, criam mitos e falseiam os acontecimentos em busca de uma feitura estética e grandiosa, como imprimiu Homero na Ilíada, com seu gênio insuperável. Homero relata em seu poema que a causa da guerra dos gregos contra Tróia foi o rapto de Helena por Páris, que a levou para a cidade dos troianos. Herôdoto desmancha o mito e mostra que Páris levou Helena e o tesouro de Menelau para Salinas, no Egito, onde havia um templo de Hércules que protegia a todos que nele se refugiassem. Então por que a guerra contra Tróia? Herôdoto explica que os troianos controlavam o estreito de Dardanelos, cobrando pedágio dos navios gregos que atravessavam o estreito em direção às suas colônias no mar Negro. Os gregos atacaram Tróia para controlarem a navegação no estreito de Dardanelos, que liga o mar Egeu com o Negro. O historiador deve levantar o véu diáfano da fantasia, estabelecendo uma verdade de acordo com a documentação (Herôdoto, 1985, p. 122-125).

A lista de manipulação é grande: o incêndio de Roma atribuído a Nero, a viagem de Marco Polo à China, o protocolo dos sábios de Sião, a democracia norte-americana, o ataque a Pearl Harbor. No Brasil a lista aponta vários fatos: descobrimento por acaso do Brasil, o mito do bom selvagem, o bom governo de Maurício de Nassau, os bandeirantes alargando fronteiras e a fundar cidades, a raça do gaúcho como formadora do Rio Grande do Sul.

Herôdoto traçou os limites entre a Literatura e a História, estabelecendo que esta se faz através da pesquisa (historia, em grego), em busca da verdade de um fato, enquanto que aquela se constrói com imaginação e criatividade, em busca do belo. Infelizmente alguns amadores confundem a Literatura com a História, a criatividade poética com o fato histórico, o mito com a realidade, ignorando que a busca da verdade é um objetivo constante da construção do saber histórico.

Mas então, a Literatura não serve para a construção historiográfica? Desde 1930 que um grupo de historiadores produziram uma Nova História, em torno da revista criada por Marc Bloch, adotando o princípio de que tudo é História e que ela não existe por si mesma, a não ser que seja construída pelo historiador. Assim, todo o romance, poesia, conto, fotografia, gravura, música, pintura podem ser fonte da História, desde que contenham o imaginário da época do autor. Exemplificando: as peças de teatro escritas no período da escravidão e que colocam o cotidiano dos escravos em cena, são documentos fundamentais para estabelecer o imaginário e a conjuntura durante o escravismo. No entanto, um drama escrito hoje sobre a escravidão, não pode ser usado como fonte para o estudo histórico da escravidão porque o autor está reproduzindo o imaginário de sua época e não a mentalidade dos senhores e escravos.

A lenda dourada do cavaleiro gaúcho, como herói formador do Rio Grande do Sul, surgiu com a literatura romântica no final do século XIX. Conforme Jung "o mito do herói é o mais comum e o mais conhecido em todo o mundo". O herói formador de todas as culturas possui elementos de um arquétipo universal: é corajoso, hospitaleiro, honesto, sacrifica-se pelos amigos, luta contra o mal e não teme a morte. São atributos do herói grego, do cavaleiro medieval, do formador do clã africano, do formador do clã dos índios e do gaúcho, tanto brasileiro, argentino ou uruguaio.

A construção do mito do gaúcho é recente e envolve pessoas de etnias diferentes. É comum encontrar descendentes de imigrantes alemães, italianos, poloneses, judeus, árabes e japoneses com indumentária gaúcha (pilchas) em danças coreografadas e falando palavras do português arcaico com sotaque que denuncia sua origem diversa da tradição da Campanha platina.

Emílio Coni, pesquisando a documentação encontrou relatos sobre o gaúcho, que vivia no meio de índios pampeanos, roubando e matando o gado dos fazendeiros. Sua data mais antiga é 1617, "mozos perdidos" que viviam na proximidade de Santa Fé, atual Argentina. Em 1642, o cabildo de Buenos Aires referiu-se a bandidos chamados de "cuatreros e vagabundos", que assolavam os campos. Em 1686 os jesuítas registraram os vagos ou vagabundos que pilhavam as estâncias das Missões. No início do século XVIII grupos de homens matavam o gado da Vacaria do Mar para tirar o couro, se pagavam imposto eram chamados de "faenero", se não pagavam, eram "changadores" (Coni, 1969, p. 66-70).

Em 1750 apareceram os termos gaúcho e gaudério para designar esses marginais que viviam da pilhagem na capitania de Rio Grande de São Pedro. Em 1800, os malfeitores da Campanha sul-rio-grandenses foram denominados de gaúchos. Durante a época de safra, de novembro a março, esses gaudérios conseguiam emprego temporário nos rodeios e domas nas fazendas de criação de gado. Durante a Revolução Farroupilha o termo gaúcho tinha sentido pejorativo.

Por que esta dissonância entre a realidade e o mito do gaúcho? Os tradicionalistas e nativistas estão conscientes da origem do gaúcho? Inicialmente temos que depurar o mito do gaúcho, que por ser um mito, torna-se denominador comum ou modelo para pessoas de diferentes tradições.

O mito não é uma mentira, nem uma falsidade, é uma interpretação de uma realidade. Refere-se a uma existência histórica, pois ninguém consegue falar ou escrever sobre uma coisa que não existiu. Assim, a construção do gaúcho mítico partiu do real e se tornou plausível com referenciais históricos, passando no decorrer do tempo a ser considerada como conhecida de todos, embora seja uma criação que se processou lentamente, até se tornar anônima, formando uma tradição de geração em geração. Em pouco tempo o mito confunde-se com a tradição, sendo aceito por todos porque a narrativa usa matrizes sociológicas do trabalho campeiro, na camaradagem galponera e na turbulência das antigas revoluções e lutas na fronteira.

O espaço do gaúcho histórico era o Pampa argentino, uruguaio e sul-rio-grandense, mas a criação literária extrapolou o espaço original, colocando o gaúcho em zona onde ele nunca existiu, como na área de colonização européia, ou nos Campos de Viamão, lugar de criadores e de tropeiros de mulas.

O regionalismo rio-grandense surgiu dentro da corrente do Romantismo, influenciada pelas idéias de federação dos liberais moderados e farroupilhas, que argumentavam que o Rio Grande do Sul era diferente das demais províncias brasileiras por causa de seu clima, do seu meio físico, da raça que formava a população, da economia e da sociedade militarizada em função da fronteira e da pecuária.

No entanto, os viajantes estrangeiros referiram-se à imagem do gaúcho histórico sem as metáforas poéticas dos literatos românticos, descrevendo a imagem possivelmente deformada pela visão européia, de um tipo aguerrido e marginal à sociedade organizada.

Em 1771, Don Pablo Carbonell comunicou ao governador do Uruguai Don Vértiz y Salcedo que enviou uma partida de soldados contra os gahuchos "por ver si podían encontrar los malechores" (Jorge Becco, 1978, p. 73).

O viajante Auguste Saint-Hilaire, que esteve na província do Rio Grande do Sul em 1820, em diversos trechos referiu-se ao gaúcho como bandido, marginal e pilhador, indivíduo sem pátria que luta unicamente pelo saque.

Nicolau Dreys, em 1839, informou que o gaúcho já estava mudando, mas se reunia em grupos de pessoas sem moral e sem lei, formando uma sociedade agine (sem mulher). Afirmou que, para a felicidade dos povoados e das estâncias, os gaúchos não gostavam de mulheres.

A primeira fase do romantismo literário seguiu o modelo que se caracterizou pelo personagem central chamado de monarca das coxilhas ou de campeiro, tendo como referência histórica a Revolução Farroupilha. A trama é urdida na vingança, os personagens sofrem pelo amor contrariado, o campo é sempre melhor que a cidade, o herói é honesto, a natureza está presente com descrição da paisagem, os personagens falam uma linguagem regional e popular para salientar o aspecto nacional. Logo após a independência do Brasil, os intelectuais se propuseram a criar uma literatura nacional diferente da de Portugal, usando temática e linguagem regional.

Numa sociedade guerreira com lutas de fronteira, baseando sua economia na pecuária extensiva, não havia espaço para a produção intelectual, obrigando a poetisa Maria Clemência da Silveira Sampaio a editar seus versos no Rio de Janeiro, em 1823. Também Manoel de Araújo Porto Alegre migrou para o Rio de Janeiro, em 1837, onde desenvolveu intensa produção artística e intelectual. Nísia Floresta, que viveu em Porto Alegre de 1833-37, realizou suas publicações fora da província. Ana Eurídice de Barandas foi a única a publicar em tipografia porto-alegrense sua obra O ramalhete ou flores escolhidas no jardim da imaginação, em 1847.

O médico José Antônio do Vale Caldre e Fião publicou na capital do Império, sob forma de folhetim, em 1847, o romance A divina pastora, ambientado no Rio Grande do Sul e tendo como referencial a Revolução Farroupilha. Sua heroína, Edélia, é chamada de camponesa e de divina pastora. Há um personagem vestido à gaúcha, com grandes chilenas de prata, que deveria matar o herói em troca de seis meses de licença. Em 1849, ainda no Rio de Janeiro editou em folhetim O corsário, inserindo termos e acontecimentos regionais. O herói é o vaqueano que se veste à monarca, que significa à maneira campeira. Monarca é o bom campeiro. O termo gaúcho designa elementos armados e mal encarados, pois a palavra ainda se aplica ao marginal da área do campo. O diálogo reproduz termos regionais como poncho, macega, restinga, encilhado, apear-se, faxina, vargem.

M. J. de Oliveira Vasques publicou pequenas peças teatrais, reeditando-as em 1868, com o título de Produções dramáticas, onde consta o monólogo O gaúcho, repleto de termos campeiros e que termina com uma poesia sobre a vida triste que se passa na campina. O monólogo é humorístico, o gaúcho compara sua amada às belezas de uma égua, pois gosta de carreiras de cavalo.

Em 1865 Carlos von Koseritz editou A Campanha da província do Rio Grande do Sul, exaltando os habitantes, principalmente a beleza das mulheres. Talvez por estar há pouco tempo na província, Koseritz confundiu o gaúcho com o campeiro. O mesmo não aconteceu em seus escritos em 1883, quando o peão e o tropeiro não são chamados de gaúchos e o habitante do Rio Grande do Sul passa a ser denominado rio-grandense.

O português César de Lacerda encenou e publicou em 1867, em Recife, O monarca das coxilhas, drama em três atos sobre os costumes sul-rio-grandenses. O drama estabelece uma distinção entre o gaúcho, que é maltrapilho e castelhano, e o campeiro que trabalha como peão. O termo gaúcho ainda tinha conotação pejorativa.

De 1867 a 1874, Apolinário Porto Alegre, um dos fundadores da Sociedade do Partenon Literário, publicou cinco contos que pertencem ao ciclo do vaqueano, do campeiro e do monarca das coxilhas, usando cerca de 300 termos regionais, que ele classificou como o falar do povo. Apolinário retratou a realidade de sua época, a maneira de ser do rio-grandense contemporâneo. Em 1872 escreveu O vaqueano, como resposta ao romance de José de Alencar, escrito em 1870. O vaqueano simboliza o herói indomável em busca de vingança pela morte dos pais.

Novo ciclo surgiu na literatura regionalista quando Luís Alves de Oliveira Belo publica o romance Os farrapos, em 1877, onde o monarca das coxilhas passa a ser chamado de gaúcho, o centauro dos pampas.

No jornal Progresso Literário, de Pelotas, em 11.11.1888, consta a poesia intitulada O gaúcho, com os seguintes versos:

Soberbo, altivo, audaz,

Bem largas bombachas traz,

Ao lado enorme facão;

Onde a pistola se enlaça

P´ra afronta da humana raça,

Mas não comete traição.

Nessa época, o gaúcho histórico, gaudério e marginal à sociedade, desaparecera como voluntário na Guerra do Paraguai e pelo uso de novas técnicas nas lides campeiras, como o uso do arame dividindo propriedades e cercando as estradas que se transformaram em corredores, onde todos os que passam são vistos e controlados. Não dava mais para gauderiar cortando os campos. Em breve a linha férrea, transportando as tropas de gado, decretou o fim dos tropeiros. O uso da mangueira, brete e banheiro modificou o manejo do gado, não havia mais rodeios em campo aberto. A mão-de-obra campeira, liberada pelas mudanças na técnica do trabalho na agropecuária, vem para a periferia das cidades e engrossa as fileiras dos revolucionários e das forças legalistas na revolução de 1893-95.

Júlio Prates de Castilhos instalou a ditadura positivista em 1891, continuada por Antônio Augusto Borges de Medeiros e terminada em 1930 com Getúlio Dorneles Vargas. A sangrenta revolução federalista dividiu politicamente as famílias rio-grandenses.

Depois veio a paz, veio a saudade dos tempos de ouro, onde o homem livre amava o bom sol da liberdade. Era necessário unir os rio-grandenses. João Cezimbra Jacques criou, em 1898, a primeira instituição cultural tradicionalista, o Grêmio Gaúcho, com o objetivo de cultuar as memórias dos heróis farroupilhas Bento Gonçalves da Silva e Davi Canabarro, em busca de um passado idealizado e mítico, desenvolvendo o nacionalismo e o civismo. Segundo Cezimbra Jacques e Jorge Salis Goulart, o gaúcho rio-grandense é o herói reordenado, civilizado pela estância e pela cidade, o gaucho malo é castelhano.

No período de 1889 a 1930, a agropecuária atingiu novos níveis técnicos, liberando a mão-de-obra no campo. Na zona de produção de arroz abandonaram as foices individuais em troca de modernas ceifadeiras que percorrem os arrozais. Os campeiros se refugiam na periferia das cidades, em busca de trabalho nas fábricas, vivendo em malocas sem esgoto, sem água e sem eletricidade.

Luiz de Araújo Filho editou, em 1898, o livro Recordações gaúchas, em que o campeiro é o gaúcho, de vida rude pampeana, mas sempre otimista, "onde descendente de gaúcho, gaúcho era". Confunde-se o gaúcho com o campeiro, o homem marginal com o integrado na sociedade rural.

Surgiu um novo tipo de gaúcho mítico, o herói fundador de uma raça que viveu sua idade de ouro, que foi destruída pela urbanização e pela industrialização. Em 1910 Alcides Maya publica Ruínas vivas, considerando o Rio Grande do Sul decadente, no presente só restavam ruínas de um passado glorioso. Alcides Maya, ao cultuar o passado, criou uma imobilidade na própria literatura regionalista, levando os escritores mais jovens a adotarem uma linguagem morta, com termos gauchescos. Em Alma bárbara, o gaúcho é valente, mulherengo e indiferente à morte, conforme a quadrinha transcrita:

Sou gaúcho de bom gosto,

Morro quando Deus quiser;

Só dois prazeres conheço:

Cavalo gordo e mulher (Maya, p. 59).
Em 1912, João Simões Lopes Neto publicou Contos gauchescos, em estilo pré-modernista, usando linguagem narrativa simples e com termos regionalistas nos diálogos, e Lendas do Sul, obra inspirada no cancioneiro espanhol, contendo a lenda Salamanca do Jarau, criando a realidade fantástica que está impregnada de elementos do imaginário rio-grandense. Suas criações literárias, como a lenda de Sepé Tiaraju, são adotadas em sala de aula como se fossem a história do Rio Grande do Sul.

O livro de contos Terra gaúcha, de Roque Callage, publicado em 1914, apresenta o gaúcho mítico transfigurado em campeiro, não é mais o marginal historiado por Coni ou descrito pelos viajantes. Sua pretensão é de apresentar os contos como ensaios sociológicos e folclóricos, dentro de uma linha positivista de mitificação do herói.

Ramiro Barcelos, preterido em sua candidatura a senador, vingou-se do presidente do Estado, Antônio Augusto Borges de Medeiros, satirizando-o no poemeto Antônio Chimango. Cada capítulo inicia com a ronda, que descreve em sextilhas as lides campeiras, depois o tio Lautério reúne a peonada e conta a história relambória de um tal Antônio, Chimango por sobrenome. O anti-herói é apresentado como astuto, malicioso e intrigante, na maior sátira política escrita no idioma nacional.

Nada mais cômico e ridículo do que Borges de Medeiros transformado em gaúcho, pois, como seguidor da doutrina de Augusto Comte, tinha como utopia do progresso a sociedade industrial, antítese dos costumes campeiros.

A luz elétrica, o bonde e o cinema trouxeram modificações sociais, principalmente os filmes estrangeiros, ainda mudos, que mostravam ao povo novos valores, outras idéias e formas de viver. Na década de 1910 encontrei referências em jornais sobre o grupos carnavalescos de Porto Alegre, de nome "Os Fazendeiros", fantasiados de gaúchos, com botas, esporas e bombacha. Mas na década seguinte, em resposta ao movimento modernista, com seu nacionalismo verde-amarelo, firmou-se o mito do gaúcho, cultuado como nosso ancestral. O sul-rio-grandense virou gaúcho, mesmo que tivesse nascido na cidade e não soubesse montar a cavalo.

Em 1920 Múcio Teixeira editou Os gaúchos, um estudo do meio físico, da história, da vida no pampa, do cancioneiro popular e com biografias de pessoas ilustres. Traça o perfil do gaúcho como um ser dotado de heroicidade selvagem, "que luta braço a braço e peito a peito, só regressando aos pagos coroado e condecorado de golpes e cicatrizes".

Múcio Teixeira recolheu quadrinhas, que considera superiores ao de qualquer outro ponto do Brasil, pelos rasgos característicos da independência e bravura do povo de guerreiros e poetas. O gaúcho é guasca largado, o monarca das coxilhas é alto, reforçado, sadio, inteligente, desembaraçado, ágil, audaz, valente, franco e generoso. Considera uma injustiça compará-lo ao vaqueano do Piauí, ao sertanejo do Maranhão, ao jangadeiro do Ceará, ao jagunço da Bahia, ao tabaréu de Sergipe, ao matuto de Pernambuco, ao caipira de S. Paulo ou ao garimpeiro de Minas Gerais (Teixeira, 1920, p. 29-31).

A Academia Brasileira de Letras, em 1925, deu o primeiro prêmio de contos a Darcy Azambuja, pela obra No galpão, que têm como tema o cotidiano de carreteiros, tropeiros e peão de estância, denominados de gaúchos. Azambuja não trata do mito, mas coloca em seus personagens sentimentos e valores elevados.

Em 1925, Vargas Neto publicou Tropilha crioula, verdadeiro hino de exaltação ao gaúcho e às suas vivências de campo aberto. O estereótipo do gaúcho valente, machão, hospitaleiro e bom, passou a ser explorado pelos escritores tradicionalistas que criaram obras eruditas, com linguagem popular extinta, para serem incorporadas pelo povo como tradição gauchesca. Na realidade a tradição popular é dinâmica e se modifica no decorrer do tempo.

Universalmente o herói fundador vive num mundo diferente, gauderiando no Pampa, livre como o vento Minuano que corre pelas verdes coxilhas. É um mundo de fronteira, onde só o valente sobrevive, sem patrão e sem lei, conforme o poeta popular:

Quem é gaúcho de lei

E bom guasca de verdade,

Ama, acima de tudo,

O bom sol da liberdade.

Nos campos de minha terra,

Sou gaúcho sem patrão;

De a cavalo, bem armado,

Minha lei é o coração (Meyer, p. 37).

Esses versos, coletados por Augusto Meyer tornaram-se anônimos e, sendo aceitos por uma tradição oral, tornaram-se autênticos.

A palavra guasca é de origem quíchua, termo dos índios charruas que significa tira de couro, mas é usada como sinônimo de homem livre, conforme o tema dos versos.

A identificação com o índio charrua foi sublimada por Alcides Lima, em 1882, quando escreveu que o gosto pela liberdade era herança do charrua, que não tinha chefe e tudo decidia em assembléia, como se o desejo de liberdade pertencesse unicamente a esses índios.

O gaúcho tem sua imagem sublimada, a imaginação poética sempre seleciona o que há de melhor em determinada etnia, ocultando o negativo, assim até mesmo o mais humilde, se é de pele mais escura é índio. Na linguagem usada em CTG, o termo xiru, do quíchua chiru, designa um rapaz. Há comparações com índios charruas na literatura gauchesca. O termo criollo é do espanhol, significando nativo, próprio do lugar, como por exemplo música criolla.

Há um racismo encoberto, que aflora em Severino de Sá Brito quando escreveu que os índios trouxeram dois grandes benefícios ao Rio Grande do Sul: concorreram para formar a peonada nas estâncias, diminuindo a introdução do elemento negro e ainda prestaram o serviço de apagar essa mancha negra (Brito, p. 128-29).

Roque Callage publicou, em 1927, o livro de contos Quero-quero, com cenas da vida campeira, onde o campo é melhor que a cidade e os processos gauchescos se alteravam à força do tempo e do progresso. Seus gaúchos se opõem ao progresso da cidade e do campo (Callage, 1927, p. 39).

Em 1937, com o Estado Novo, as instituições regionalistas foram extintas em face da política nacionalista de Getúlio Vargas. Com a fundação do 35 CTG, em 1947, surgiu um novo ciclo do gauchismo. A produção literária tradicionalista é tida como modelo de nossa tradição, sendo adotada inclusive em escolas, difundindo uma realidade idealizada, transvestindo em gaúcho crianças de diferentes etnias que formam o Rio Grande do Sul. Nas áreas de colonização alemã, italiana e polonesa, onde não existiu o gaúcho histórico, erguem-se galpões de Centro de Tradições Gaúchas (CTG), onde descendentes de colonos se fantasiam de gaúcho e de prenda, esquecendo as tradições e o folclore de seus antepassados. Prefeituras de município, sem a tradição do gaúcho, realizam rodeios, festivais de canções e de danças, destruindo muitas vezes o folclore e tradição locais.

Manoelito de Ornellas interpreta o gaúcho como sendo resultado de uma herança da cultura árabe, tanto o uso do cavalo como a indumentária, chegando a cometer o erro crasso de afirmar que chiripá, de origem indígena, é árabe (Ornellas, 1964, p. 25-32).

O historiador e crítico literário Guilhermino César admite que o Rio Grande do Sul, apesar de seus aspectos tão brasileiros, mantém uma cultura diferenciada, por ser um território onde se chocou a ocupação portuguesa com a espanhola, mantendo a fronteira sempre em armas. Autor considera o gaúcho mais uma expressão econômica do que um tipo étnico. Os acontecimentos históricos contribuíram para o distanciamento entre o gaúcho brasileiro e o gaúcho platino. Aquele tornou-se sedentário com o trabalho da estância, com vida modelada pelas técnicas de batalhas. A cultura diferenciada do rio-grandense é oriunda de pressões externas da região platina, enquanto que a pressão interna gerou a democracia (César, 1964, p. 13-24).

Moysés Vellinho procura explicar as tendências culturais e sociais do gaúcho através de modelos deterministas raciais. Essas tendências estariam relacionadas com a maior ou menor contribuição do índio, elemento fortemente diferenciador no confronto entre os dois tipos históricos do Prata e do Rio Grande do Sul. O índio entrou com um contingente maior na formação do gaúcho argentino, contribuindo com uma "carga de ódio com que reagiu ao desprezo e às violências do espanhol nas bandas platinas". Quando os portugueses chegaram ao Rio Grande do Sul, em 1737, já a população nativa estava rarefeita, porque os índios abandonaram as aldeias para se dedicarem à captura do gado e seguir a demagogia caudilhesca platina. Outros fatores importantes para a diminuição do contingente indígena foram a clausura missioneira, a guerra entre as tribos, a fome e a epidemia. O tratado de Madri, em 1750, provocou a derrocada das Missões. Vellinho insiste numa ordem político-militar que necessitou de uma aliança e amizade com o gentio. Assim, a população do Rio Grande do Sul nunca se constituiu em aglomerado informe e sem lei, como na região platina onde a antinomia campo-cidade se apresenta com violência, a ameaçar os padrões da civilização (Vellinho, 1964, p. 33-44).

A linguagem simbólica surge em decorrência da existência de muitas coisas fora do alcance da compreensão humana. O símbolo do gaúcho representa um conceito que não se pode definir, que transcende o seu significado manifesto. A representação do mito exprime, em muitas comunidades, uma experiência que as pessoas gostariam de ter vivido, transformando-a numa fantasia inconsciente, evasiva, precária, que precisa ser estabelecida com normas: tamanho da armada do laço, coreografia da dança, tipos de pilchas, penteado das moças.

O símbolo do gaúcho tornou-se coletivo porque usa arquétipos arcaicos que foram elaborados cuidadosa e conscientemente na mitologia de todas as civilizações ao longo dos séculos: coragem, ousadia, alegria, indiferença pela morte, honestidade, honra, amor ao pago, machismo, lealdade.

Segundo Jung, estas imagens arquetípicas são instintivas, fazem parte da natureza humana. O gauchismo nada mais é do que um fator antagônico em decorrência da urbanização e da transformação da sociedade que trouxe rupturas morais, mudanças nas relações familiares, competição econômica, dificuldade de relacionamento e reivindicações de grupos, de etnia e de sexo. Mas também tem um significado ideológico, o CTG é organizado como uma estância, patrão, capataz, sotocapataz, peão e prenda. O mito do herói formador se confunde com o latifúndio de criação de gado, que produz pouco emprego e pouco desenvolvimento para a região. Não se pode mexer na fazenda de criação porque ela é o modelo que seguem os tradicionalista.

O mito do gaúcho é alimentado pela mídia, em espetáculos de dança, música, canto e declamação. As churrascarias também abrem espaços para artistas tradicionalistas. A indústria de CDs colocam constantemente no mercado fonográfico músicas gauchescas. Os municípios realizam provas campeiras, concursos de danças e de músicas. Lojas especializadas vendem caríssimas roupas normativas para os bailes e espetáculos, movimentando este segmento comercial. Onde estes artistas, cantores, músicos, declamadores encontrariam espaço comercial para seus espetáculos, se o mito do gaúcho não fosse alimentado pelos poetas e pela mídia? Enquanto estes espetáculos são uniformizados, por causa das normas do MTG, o folclore do negro, do teuto-brasileiro, do ítalo-brasileiro e do descendente de polonês ou árabe, estão sumindo por causa do gauchismo, até mesmo em município que nunca teve gaúcho. Será um simples modismo ou um esquecimento de suas raízes? Prefiro o Rio Grande do Sul conservando seu rico e diferenciado mosaico cultural.

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Texto extraído em: http://www.esteditora.com.br/textos/gaucho.htm

6 comentários:

  1. Achei espantoso não encontrar nenhum comentário por aqui.

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  2. Que bacana ver alguém lutar com as palavras em defesa da pluralidade. Se a gente eliminar os estereótipos, as pessoas serão olhadas com a compreensão de que todos somos tão ditintos que somos equivalentes, cada um com sua carinha

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  3. Que bacana ver alguém lutar com as palavras em defesa da pluralidade. Se a gente eliminar os estereótipos, as pessoas serão olhadas com a compreensão de que todos somos tão ditintos que somos equivalentes, cada um com sua carinha

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  4. Parabéns, gostei muito do artigo, principalmente por termos pontos em comum. Escrevi algo em meu Blog sobre o assunto: https://www.magomerlin.blogdomoa.com/2021/07/cultura-costumes.html

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  5. Estou sempre no meio, que infelizmente não tem nada a ver com Cultura e Arte (mais ideologia). A cultura, conforme escrevi, depende de uma série de fatores, seja geográfico, clima e até hormônio (serotonina). Afirmo que uma "cultura", não passa de três gerações (principalmente imigrantes). Fora o Livro Sagrado (único verdadeiro), a única coisa que eu considero, são as escritas e símbolos arqueológicos. Tudo é interesse, ou do autor ou da RELIGIÃO que ele segue. A história do Brasil, é uma mentira só. Veja que sempre os Jesuítas estão por trás.... dá para entender o interesse.

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  6. qual o problema das pessoas continuarem a preservar essa cultura, mito ou nao? que cara chato querendo cagar regra do que se deve ou não cultural. Os árabes e italianos que criem seus movimentos também, ora

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